Nos últimos meses, e em especial nos últimos 45 dias, a mídia digital tem passado por uma série de importantes contratempos, que têm dramatizado os seus grandes problemas, como a baixa visibilidade de anúncios e vídeos, métricas com duvidosa precisão e credibilidade, fraudes na contabilização de cliques e a publicação de notícias falsas.

Tudo começou há tempos, quando os principais players digitais acreditaram que poderiam romper o “contrato social” firmado tacitamente com os consumidores: as mídias proviam conteúdo (jornalismo, informação e entretenimento) de qualidade e as pessoas lhes davam audiência.

Em razão do volume dessa audiência e de sua qualificação, os anunciantes pagavam pela veiculação de seus anúncios e comerciais. Era um “contrato comercial” tácito, que perdura de forma produtiva por mais de um século.

Mas o digital rompeu essas regras, provendo conteúdo de má qualidade ou até o não-conteúdo aos consumidores e oferecendo por preços aviltados, espaços publicitários que, na prática, tinham valor inferior ao que era cobrado e não resultavam em retorno adequado aos anunciantes.

Surgiu uma “cadeia de desvalor” no negócio da mídia, com diversos intermediários e fornecedores de tecnologia que ficavam com recursos que seriam das empresas de mídia produtoras de bom conteúdo e ajudavam a criar a ilusão de que o novo sistema estava funcionando.

Só que não. A visibilidade foi ficando cada vez mais comprometida, as métricas menos robustas e as fraudes crescendo a níveis inacreditáveis. Recente estudo da Adloox indica que, apenas neste ano, as perdas com fraudes podem chegar a US$ 16,4 bilhões, em termos globais.

Esse valor corresponderia ao quinto maior conglomerado de mídia do mundo, localizado entre a 21st Century Fox (US$ 18,67 bilhões) e o Facebook (US$ 11,49 bi). Só para lembrar, o maior é o Google, com US$ 59,62 bi. E a dúvida agora é o quanto desta receita e da do Facebook seriam derivadas de fraudes?

Desde o último dia de janeiro deste ano, o inferno astral do digital só faz crescer, com o posicionamento da Procter&Gamble, maior anunciante do mundo, que não aceitaria mais essa situação. Em que foi seguida por muitas outras.

O escândalo da veiculação de publicidade de grandes marcas mundiais junto a vídeos e sites de organizações terroristas e racistas, em fevereiro, acendeu outros sinais de alarme.

Diante de tudo isso, o duopólio que controla o mercado digital no mundo deu respostas burocráticas e fez sinais muito tímidos de que estariam mudando de atitude e prática. Agora, começando pelo Reino Unido, além de grandes anunciantes, agências como o Grupo Havas e o WPP estão começando a agir, suspendendo programações publicitárias e instando a atitudes mais vigorosas para enfrentar os problemas.

Seria o começo de uma “revolta” contra Google e Facebook, como afirmou Bob Hoffman, um muito bem informado e lúcido observador do mercado de mídia e publicidade?

Será que esses são sinais que de fato todos entenderam que é tempo de reconstruir o digital a partir dos padrões desenvolvidos e apurados pela mídia tradicional? Será que ficou evidente que a mídia digital precisa ser salva de si mesma?

É certo que o futuro de todas as mídias está no digital, como linguagem, como instrumento operacional, como plataforma de distribuição e como um elemento amplificador de sua presença e de resgate da sua memória.

Mas, paradoxalmente, o modelo do futuro é aquele que deu certo para TV, rádio, jornal e revista, em termos de respeito aos consumidores e aos anunciantes e de melhores práticas na sua atitude e operação.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda