Vivemos tempos em que é difícil pra burro determinar o que é real. Outra noite fui a um show num pequeno espaço na zona sul do Rio. Era um show relativamente pequeno, e havia a promessa de participação de uma celebridade da MPB, e para isso a grande maioria das pessoas estava lá, de fato. Tudo transcorreu com relativa tranquilidade, até o “momento celebridade”. No instante em que ela pisou no palco, uma muralha de celulares se ergueu até o último segundo em que esteve ali. Fui até o bar, pedi um drink e fiquei ouvindo a música, observando a barreira de celulares iluminados acima das cabecinhas dançantes. Vi um pedaço do show, depois, pelo celular de uma amiga que, como boa parte da plateia, filmou cada minuto – talvez sem conseguir, ela própria, enxergar o evento com os próprios olhos, no tempo real. Talvez muitos nem tenham assistido àquilo que de fato não viveram. Há uma grande confusão entre o que se vive e o que se acredita viver, no balanço permanente da vida registrada em telas. Lembro-me do tempo em que viajava sem celular. Confesso que coleciono mais lembranças das viagens que fiz na era pré-digital, cujo olhar não era de quem busca o melhor ângulo para fotografar, mas de quem fareja cores e sabores, de mãos dadas com Mnemosine, a deusa da memória.

Hoje, o pit-stop em um lugar basta. Se o momento é eternizado na tela, ninguém saberá que durou apenas dois minutos. Comidas se saem melhorem imagens do que no palato. Roupas vestem bem no Instagram e não no corpo. Olhares, cabelos e sorrisos são ajustados com filtros e assim vamos rejeitando quem somos, dia após dia. Nos autodeletamos continuamente – porque a realidade que não nos agrada se tornou fácil de burlar.

O valor de tudo isso? O mesmo de um Stories, que dura algumas horas e se esvai. E assim nos transformamos nos androides com os quais fantasiamos embalados por Ridley Scott. Damos vida ao conto de Ian McEwan, Düssel…, em que o amante não tem certeza se a mulher que ama é de verdade, e decide perguntar. A resposta é certeira: sim, ela é uma linda androide, tão perfeita que chega a doer. O mundo descrito por Ian é repleto deles, que conquistaram direitos, podem ter filhos e para os quais perguntar se são “de verdade” já se tornou constrangedor e até ofensivo. No mundo ficcional de McEwan, androides performam, claro, infinitamente melhor do que nós, humanos defeituosos. Robôs assustam e atraem precisamente porque representam nosso ideal de perfeição, de infalibilidade, de inteligência superior, aquela que tudo sabe, que tudo calcula, que tudo resolve.

Conectados 100% do tempo, nos contentamos com a “perfeição” nas telas vivendo vidas (físicas) mornas e relações superficiais (com os outros e com nós mesmos). Essa desumanização superplugada começa a incomodar como um elefante na sala. Um estudo conduzido pelas Universidades de Stanford e Nova York avaliou os efeitos da desconexão
do Facebook nas pessoas. Entre as consequências: mais tempo passado com amigos e parentes, menos informação política, melhora de humor, mais satisfação na vida e tempo para o lazer. Tentador. Não por acaso, usei para ilustrar este artigo uma obra do artista plástico Marcello Serpa, que me tocou de cara porque traduz de um jeito inesperado a necessidade de outra conexão na vida: com nós mesmos. A imagem do cabo ligado ao “terceiro olho”, que representa a intuição e a percepção sutil, dá a medida exata de uma conexão que, esta sim, vale à pena.