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Não acho que eu tenha talento para acrescentar uma única linha nova a tudo aquilo que foi escrito sobre Cauby desde a notícia de sua morte. Alguns dos melhores pensadores do jornalismo brasileiro dedicaram bastante espaço para prantear um dos maiores cantores da história de nossa música. E ele mereceu cada uma das notas. Foi realmente um cantor excepcional, dono de uma qualidade vocal única, um intérprete incrível, além de uma figura encantadora.

Cauby era um espetáculo. Sua presença no palco transformava qualquer auditório de rádio de programa de domingo à tarde numa noite de gala. Cauby jamais foi despojado. Foi fiel à sua importância. Sabia o que representava. Nunca foi até a padaria tomar um café, morreu sem jamais ter ido a um botequim de bermudas. Tinha consciência absoluta de seu papel de ídolo e do que significava para seus fãs. Nunca falou mal de ninguém, não se meteu em política e fazia a maior questão de não ter nenhum tipo de opinião sobre nada, a não ser aquilo que poderia cantar.

O que ele pensava sobre si mesmo e sobre o mundo estava nas melodias que interpretava. E no quesito estilo, se superou. Cauby cantou de tudo, sem nenhum tipo de censura. Foi do rock ao blues, do sambinha ao jazz, do bolerão ao operístico. De Chico Buarque a Adelino Moreira, de Charlie Chaplin a Jaques Brel. Não sei se existe na música, em todo o mundo, um exemplo igual. Vai ver que sim. Mas – vamos lá – poucos como ele. Tinha a consciência do que é ser intérprete. Do ator que canta. Ele gostava de cantar.

Se numa viagem da ponte aérea alguém pedisse, ele desfiava, em pleno voo, o repertório inteiro, quase agradecendo a oportunidade. No último dia 22, o Canal Brasil apresentou o magnífico documentário de Nelson Hoineff Começaria tudo outra vez, realizado enquanto ele estava vivo. Poucos documentários têm o respeito e a delicadeza que esse teve pelo tema que pretende focar. Utilizando um imenso arquivo de imagens de Cauby, leva o espectador a conviver com sua história e os seus últimos dias, sem nenhuma pieguice.

A câmera de Hoineff capta os derradeiros momentos, ainda que não anunciados, enquanto Cauby vai se restringindo à própria essência. Trôpego e meio alheado, Cauby se prepara para os shows, escolhendo, sem muito entusiasmo, as roupas coloridas que iria usar. Dá a impressão que está sempre meio distante. Só tem algum tipo de interação com a realidade no contato com os fãs que o perseguem por onde vai. Para eles, o sorriso e o beijo emergem sinceros de uma consciência que, por momentos, parece dormitar.

Também deixa de lado a censura quando fala de sua sexualidade e expõe a alma, depois de 70 anos de dissimulação. Abre o verbo. “Subi muito o morro para comer viado”. Depois, mais ou menos, explica que nunca deixou de ser garoto que “brinca com o pinto dos outros”. E sorri. “Tudo é normal”. Não reclama de nada. Sabe quem é e o que significa. Mas o grande momento do documentário é a sequência final. Ele vai se apresentar junto a sua grande amiga, Angela Maria, que numa certa época a mídia os fez namorados (Ângela era um tesão, mas nunca foi chegada ao Cauby na área sexual, embora sempre tenha gostado dele). A voz dela já não é a mesma, mas a cabeça está tinindo. Cauby é o contrário. O teatro está lotado. No camarim (ou será no seu quarto?) a secretária lhe apresenta uns dez paletós diferentes. Todos muito coloridos, cintilantes, exagerados. Só Liberatti ou ele não ficariam ridículos. Ele aponta para um deles. Tanto faz como tanto fez.

Vestem-no. Ele segue, meio carregado, para as coxias. Dão-lhe uma cadeira e os técnicos, pressurosos, o cercam. O diretor dá as últimas instruções. Ele olha o infinito, mundo que só quem já conheceu milhões de coxias, ouviu milhões de aplausos e conviveu com milhões de admiradores sabe como é. Alguém explica que ele deve começar a cantar após um sinal. E apresentam o técnico de som. Ele olha e recomenda: “Ponha um pouco de eco”. Toca o terceiro sinal. O teatro é tomado por uma voz imensa, enorme, afinada, poderosa. “Cantei… cantei… como é cruel cantar assim…”

Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor