Minha sogra morreu aos 104 anos. Artista plástica (são dela as esculturas do Memorial dos Imortais na Academia Brasileira de Letras e no Cemitério São João Batista), tenista, discípula de Guignard, professora, chefe de voluntárias de um hospital, líder de família imensa que se desdobra em diversas ramificações. Tia de Ziraldo, sua casa em Lagoa Santa vivia cheia de artistas para ouvi-la. Até um ano atrás, mantinha um atelier onde não faltava um forno para fundir metais e maquinária pesada, que ela operava sem ajuda. Sua entrevista com o Jô Soares é uma delícia, onde os dois se paqueram, até ela exigir que o caso que ele insinua estar interessado seja avalizado por documentação legal. Evidentemente, tudo na mais absoluta brincadeira, até porque, aos cem anos, ela considerava o Jô um garoto. Sobre ela, Mauro Ventura escreveu uma crônica que faço a mais absoluta questão de roubar, até porque realmente não me sinto muito inspirado. Abro as necessárias aspas e transcrevo o texto deste amigo, que soube entender como ninguém a alma desta mulher que, tendo mais de cem anos, surpreendeu a todos com sua morte. Leiam:

“Meu filho olhou dentro do cinzeiro e me perguntou: – Pai, o que é isso? Ele tinha três anos e nunca havia visto uma guimba de cigarro na vida. Estávamos em bom número naquele almoço na casa de Silvana Gontijo e Lula Vieira. Expliquei para Eric o que era e apontei para a única fumante daquela tarde: Lêda Gontijo, então com 101 anos. Mais cedo, Lêda havia beliscado torresmo e pão de queijo com linguiça, encarado tutu e costeleta de porco e bebido vinho. Era mesmo um fenômeno da natureza, com uma genética privilegiada. –“Eu como de tudo, mas com parcimônia” – ela me contou numa entrevista para a coluna Dois Cafés e a Conta, no Globo, em 2015. –“Uma vez, numa palestra sobre qualidade de vida e alimentação na velhice, me chamaram como exemplo. Eu ouvia os especialistas falando sobre comida orgânica e sem gordura, alertando “não pode isso”, “não pode aquilo”, até que me perguntaram: “Dona Lêda, pode nos dizer o que faz para ter essa saúde?” Respondi: “Fumo, bebo e jogo. E só não faço sexo porque não tenho parceiro”.

Cuidava da casa, do jardim e dos bichos, foi campeã de tênis pelo Minas Tênis Clube, andava de moto, fundou as Voluntárias da Santa Casa de Lagoa Santa, onde morava, evitou a derrubada da Igreja do Rosário da cidade. Esculpia, dava aulas, fazia exposições. Da madeira à fibra de vidro, passando pela pedra, explorou os mais diferentes materiais numa carreira que ia da pintura à escultura, do design à cerâmica. Era considerada por Ziraldo uma das grandes artistas mineiras do século 20. Já com 100 anos, recebeu um convite de amigos para visitá-los na Bolívia. – “Fiquei doida para ir e aceitei. Meus filhos foram contra, então fui sem autorização deles”. Quando a filha Silvana ligou perguntando onde ela estava, ouviu: – “Na Bolívia”. – Mas a gente combinou de passar o Dia das Mães juntas! Era tarde. Lêda adorou a viagem, tanto que passou uma semana. “Levada”, “arteira” e “moleca”, como se autodefinia, ela lamentava ter tido de parar de dirigir – teve a carteira apreendida por excesso de velocidade. Escondeu dos netos, porque vivia alertando que não se pode correr. – “Mas eles descobriram e caíram na minha pele”. Ainda conseguiu dirigir por mais três anos, fugindo dos guardas. Até que foi parada e pediram a carteira.

– Respondi: “Vocês tomaram. Vocês não guardam, não?” Devem ter achado que eu estava esclerosada e me liberaram. Nos momentos difíceis mantinha a irreverência. Em 2004, teve um tumor no intestino e veio ao Rio fazer uma colonoscopia (endoscopia do cólon e do reto). À noite, na casa de Silvana, botou o DVD com o exame em cima da mesa, e Lula, curioso, perguntou: – Que DVD é esse? Ela respondeu: – “Meu filho, hoje fiz meu primeiro filme pornô!” Em Belo Horizonte, desafiava a moral da época. – “Conheci meu marido Paulo em 1935. Imagine o espanto de meus futuros sogros com uma moça que já naquela ocasião usava calça comprida, dirigia, fumava e falava alto?” Mesmo assim enfrentou outros preconceitos: na época, mulher casada botava o umbigo no fogão e cuidava do marido e dos filhos. “Uma mulher da sociedade ser artista era quase como ser prostituta. Por vergonha, eu escondia muitas obras, quando era uma nudez ou trabalho mais livre”. Mas nunca se deixou atingir e se tornou uma artista plástica reconhecida. Essa mulher admirável, que acaba de nos deixar, aos 104 anos, vivia espalhando alegria, bom humor e vitalidade, e merecia o apelido que a neta Flô lhe deu: “Vovó radical”.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)