Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Há elementos que não se misturam, e foi isso que pensei na primeira vez em que assisti ao comercial da Gillette protagonizado pelo jogador Neymar, em que ele faz “mea culpa” sobre suas atitudes tão criticadas pelas pessoas durante a Copa do Mundo da Rússia. Não é que não haja adequação no uso do jogador dentro de uma campanha que defende a busca pela evolução e o desafio de ser “um novo homem todo dia”. Cá pra nós, o jogador – que é embaixador da Gillette desde 2015 – é ótimo personagem para uma campanha com este conceito. O problema é que o filme entrou no intervalo do Fantástico como se fosse um pronunciamento do Neymar à nação brasileira. Patrocinado pela Gillete. Quem falava? Neymar? A Gillete? Os dois? A resposta mais exata talvez seja: nenhum dos dois.

Do briefing certamente passado para a equipe de criação da Grey Brasil nasceu, oportunisticamente, uma espécie de “publieditorial” do jogador. Um minuto e meio de desculpas, com uma estética que lembra (muito) um filme da Adidas veiculado durante a Copa de 2014. Uma peça considerada fajuta e que, além de não melhorar a imagem do próprio jogador, parece ter queimado bastante a reputação do anunciante, que vinha mandando bem nas suas ações de comunicação. E ainda dizem por aí que o trabalho rendeu ao jogador um cachê de R$ 1 milhão.

Acompanhei as reações na imprensa e nas redes sociais, e as muitas críticas dos meus conhecidos de rede, claro, como a do publicitário Ken Fujioka, que disse que não é uma boa ideia, ao errar, que se peça para uma agência criar uma campanha publicitária pedindo desculpas. “É quase como ser premiado por errar – ou legitimá-lo, valendo-se da força e da credibilidade de uma segunda marca que lhe endossa, poderosamente, o suposto perdão”, argumentou Ken. Concordo com ele. Em tempos de tantas possibilidades de formatos de conteúdo oferecido por marcas, o fato é um só: uma marca não pode assumir a voz de uma pessoa. Ela precisa ter a própria voz. Quando se fala em transparência e propósito, fala-se da verdade individual de cada marca. Assumir a voz de uma pessoa, ainda que seja seu “embaixador” na publicidade, é um risco grande, porque pessoas…têm as próprias marcas individuais a construir, e a zelar. A confusão, aqui, me parece ter sido essa, e o erro, duplo: Neymar errou ao não assumir a própria voz e continuar, portanto, se comportando como um menino que faz molecagens, enquanto a Gillette errou por tentar acolher o seu garoto-propaganda, assumindo de maneira esquizofrênica sua voz como um discurso próprio, que ecoou como fake news.

Chamou-me a atenção, em meio às críticas, uma outra de nuance bem diversa, assinada por Ian Black: “esse vídeo da Gillette/Neymar é o maior monumento à fragilidade masculina e ao trabalho emocional que homens – que resistem ferozmente na manutenção dos privilégios da infantilidade – insistem incansavelmente em demandar dos seus pares”. De fato, a publicidade conseguiu captar exatamente o espírito do tempo. Que vergonha de ser homem.” Ian detectou, também, a incômoda presença do estereótipo – mais uma bola fora, sem dúvida alguma. Procurei a Gillette, que se recusou a dar entrevistas, e divulgou uma declaração curtinha, defendendo a sua campanha e o convite a “todos os homens” de refletirem sobre as novas chances que cada dia oferece para se tornarem melhores do que ontem. E ponto final. Nelson Porto, que também acompanho nas redes (e que usou o termo que aproveitei como título para este artigo), resumiu todo o imbróglio com a frase atribuída a um diretor de criação: “quando não há nada a dizer é melhor ficar quieto.” Fiquei pensando se, justo agora, não seria um bom momento para tanto Neymar quanto a Gillette abrirem um diálogo franco com as pessoas. No entanto, há fortes indícios de que talvez nenhum deles tenha mesmo o que dizer, além daquilo que (não) foi dito.

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