Este ano foi minha primeira vez no festival de Cannes e por uma semana eu estava super impressionado e inspirado. Assisti palestras incríveis e entrevistas como a do David Droga que aconteceu no penúltimo dia. Foi incrível.

Quem me conhece sabe que nunca fui fã de Cannes, sempre tive minhas diferenças com o Festival. Tenho a certeza de que Cannes é responsável por mover a indústria para frente e é um remédio contra a mediocridade, também é um ótimo momento para fazer network.

Fiz alguns novos amigos, encontrei antigos, e apesar de tudo isso, em alguns momentos eu me encontrava com um sentimento de culpa, uma culpa pelo fato de estar amando tudo aquilo. E fiquei me questionando o porquê desse sentimento.

Talvez pelo fato de estar amando mesmo sabendo que a maioria das pessoas que trabalham comigo não terão a oportunidade de ir para Cannes, pelo menos nem tão cedo, ou por ter amigos que fizeram trabalhos incríveis de grandes resultados e com grandes chances de ganhar, e infelizmente não estavam ali para comemorar, e eu sim.

Ou porque nunca gostei do festival e preguei sobre isso, e agora teria que confessar que eu estava errado por todo esse tempo.

Todos esses motivos são verdadeiros, mas não era a principal razão por trás da culpa. A culpa vem pelo sentimento que sempre tive, sentimento esse que foi embora por alguns segundos por toda a novidade e tesão que estava vivendo ali no festival.

O sentimento de que estamos todos celebrando apenas o 1% de trabalho feito no mundo inteiro, e minha pergunta sempre foi: O que as agências estão fazendo com o restante dos 99% de trabalho? Eles ficariam orgulhosos? Inscreveriam em prêmios? Mostrariam para alguém? O que as agências fazem com os briefs de verdade?

E se você olhar para o 1% dos trabalhos inscritos vai perceber que uma parcela significativa dos trabalhos são trabalhos pró-ativos, patrocinados pela própria agência para um super “cliente” que a agência “tem”.

Olhando para o festival, ainda não consigo entender como estamos sustentando esse modelo que consiste na agência criar o briefing, pagar pela execução, e no final acreditar de que é um excelente trabalho ignorando a responsabilidade com os resultados e eficiência do que fazemos.

E mesmo grande parte das pessoas sabendo que muito dos trabalhos são de “mentira”, agências ainda voltarão para casa com alguns leões e isso será a prova definitiva de eficiência, criatividade e excelência, e não será questionada pelos outros 99% do trabalho entregue durante todo o ano, que em grande maioria não moveu o negócio do cliente para frente, não gerou lucro, não trouxe mais clientes ou causou disrupção que será inevitável com o surgimento de todas as start-ups.

Cannes tem esse poder, o poder de deixar toda a indústria anestesiada. E faz isso. Talvez não em todas as regiões, mas definitivamente no Brasil. Vamos lá, nós trapaceamos a nós mesmos, porque sabemos como é difícil inovar com um briefing do dia-a-dia, com um budget pequeno e com várias idas e vindas durante o processo. Por isso, Cannes se transforma em nosso playground, o momento de ser realmente criativo, sem barreiras.

Uma coisa tenho certeza, devemos continuar amando Cannes, e se você alguma vez me ouviu dizer o contrário, ignore. Do outro lado, definitivamente devemos mudar a forma que lidamos com Cannes, parar de uma vez por todas com as tão famosas reuniões “Vamos pensar em Cannes”. Deveríamos todos estar focados na entrega do dia-a-dia fazendo desses trabalhos nossos melhores trabalhos. Todo dia, todo job.

Deveríamos parar algumas coisas, parar de promover apenas as pessoas que ganharam leão, muitas vezes com trabalhos de “mentira”, e deixar as outras pessoas que fizeram os 99% pra trás, só porque elas não tiveram tempo para ter ideias pró-ativas porque de fato estavam resolvendo os trabalhos de verdade, os trabalhos conhecidamente como “sem glamour”. 

Para de investir nas nossas ideias, e investir mais nas pessoas.

Parar de ranquear agências pelo 1%, e olhar para 99%, para os resultados.

Parar de nos desafiar apenas uma vez ao ano, e fazer isso dia após dia.

Estou voltando do festival certo de que Cannes nunca foi um problema, mas o que fizemos disso sim. No fim, precisamos fazer melhor. Precisamos olhar mais para o mundo e menos para nós mesmos. Mais para as pessoas e menos para nós, publicitários. Mais para os problemas e menos para os prêmios. Culpar menos e tentar mais, desistir bem menos. Esse é o único caminho, essa é minha crença.

Cannes será sempre necessário, mas não pode ser o começo, precisa ser o fim. E talvez, apenas talvez, se fizermos isso os 99% podem virar o 1%.

Saulo Rodrigues é executive creative director da R/GA São Paulo