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A comunicação de marcas é por si só um desafio para qualquer mercado, principalmente em um contexto em que sua imagem é construída cada vez mais por atitudes, crenças e propósito e não apenas produtos ou serviços. Mas em alguns segmentos, a sensação é de viver todos os dias entre a cruz e a espada. É o caso da indústria farmacêutica, que, devido à regulamentação específica pelos órgãos federais e pelo próprio Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), vive com o sinal amarelo ligado constantemente. 

Essa é a avaliação de Léo Ávila, diretor de criação da agência Santa Clara, responsável pelo reposicionamento da marca Neosaldina, do laboratório Takeda, no Brasil e campanhas como O Brasil chama a Neosa. “Sempre foi assim, a regulamentação é parte intrínseca da categoria. É como dançar entre a cruz e a espada, entre o Conar e a Anvisa”, destaca. O criativo faz referência à Lei 6.360, de 1976, que dispõe sobre a vigilância sanitária de medicamentos e insumos farmacêuticos, entre outros produtos.

Segundo a orientação do documento, “quando se tratar de droga, medicamento ou qualquer outro produto com a exigência de venda sujeita a prescrição médica ou odontológica, a propaganda fica restrita a publicações que se destinem exclusivamente à distribuição a médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos”.

Na prática, os laboratórios ficam proibidos de comunicar para o consumidor final seus medicamentos que necessitam de prescrição médica, sendo liberada apenas a comunicação dos isentos de receita, os chamados OTC (over the counter), ainda que com restrições, conforme a Lei 9.294, de 1996. “Os medicamentos anódinos e de venda livre, assim classificados pelo órgão competente do Ministério da Saúde, poderão ser anunciados nos órgãos de comunicação social com as advertências quanto ao seu abuso, conforme indicado pela autoridade classificatória”.

Para Carlos Aguiar, diretor de negócios do laboratório Medley, do Grupo Sanofi, de fato, a área farmacêutica acaba se submetendo a pouco risco na publicidade, devido à regulamentação, mas esse não deve ser um impeditivo para criar soluções inovadoras, que, acima de tudo, engajem o consumidor. Prova disso é a recente inauguração do Hotel do Sono, em São Paulo, criado para chamar a atenção dos brasileiros sobre o problema da insônia. Durante duas semanas, o laboratório promoveu palestras e workshops com dicas de alimentação e de atitudes simples na rotina, como inclusão de exercícios, para um sono melhor. Estima-se que noites maldormidas afetem até 4 em cada 10 brasileiros.

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A concepção do espaço é da agência NewStyle, que acaba de assumir o nome de TracyLocke Brasil. “Conseguimos fazer algo diferente do que estávamos acostumados. Trabalho há mais de 20 anos na indústria e essa é uma das iniciativas mais disruptivas que pude liderar. Conseguimos trazer inovação com responsabilidade. Em nenhum momento falamos de marca, algo que é superimportante, porque preciso ser coerente em um momento de compliance e de não incentivar a automedicação”, destaca Aguiar. “É papel da indústria essa conscientização, mostrando que com pequenas mudanças as pessoas podem ter um impacto positivo para a saúde delas”, disse o executivo ao PROPMARK, durante a inauguração do hotel, em julho.

Prestação de serviço

Trabalhar a conscientização sobre temas do cotidiano ligados à saúde tem sido estratégia dos laboratórios para se aproximar de seus públicos. Mais abertas a experimentações, as empresas têm usado abordagens menos engessadas, criando provocações e debates relevantes na sociedade. Para esclarecer as pessoas sobre a doença inflamatória intestinal (DII), que atinge hoje cinco milhões de pessoas em todo o mundo, a Takeda buscou no universo dos quadrinhos a mensagem que gostaria de endereçar.

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Firmou parceria com a Marvel Custom Solutions e criou um time de super-heróis para relatar os desafios físicos e emocionais de pacientes que sofrem com o problema. Para a campanha DII Sem Máscaras, foi criada uma história em quadrinhos em um hotsite da ação, que contém ainda conteúdos interativos como quizzes e também infográficos.

“A indústria farmacêutica tem abordagem mais tradicional em virtude da regulamentação do setor, mas é possível trazermos aspectos inovadores, que engajem todo o público, mas, ao mesmo tempo, feitos de maneira responsável”, explica Rodrigo Rodriguez, diretor de medicamentos com prescrição médica da Takeda. “No processo de criação, ouvimos o paciente, médicos, cuidadores e familiares. Buscamos entender as necessidades de todos os públicos. É uma campanha sobre a doença e não sobre medicamento. Esse não é objetivo e nem poderia ser porque trata-se de um produto tarjado”, destaca o executivo.

A constante preocupação com a legislação vigente torna as campanhas publicitárias no setor mais colaborativas, no sentido de incluir departamentos como o de compliance e jurídico na mesa de criação, algo que não costuma ocorrer em outros mercados. Para Pipo Calazans, CEO da TracyLocke Brasil, esse trabalho de cocriação é fundamental para projetos disruptivos no segmento.

“Uma vez que trouxemos a ideia do Hotel do Sono, trouxemos também médicos especialistas para construir o projeto com a gente. Nos aproximamos deles para cocriarem conosco. Levamos o insight, e todos se apaixonaram, nos ajudaram a criar o tour, como compor os quartos e programação de palestras. Desenvolvemos o projeto a várias mãos, e só deu certo porque os médicos entenderam que havia ali uma causa poderosa por trás”, diz Calazans.

A mesma lógica tem sido utilizada pela Pfizer em sua comunicação. O laboratório lançou recentemente a segunda etapa de sua campanha para Advil estrelada por Usain Bolt, o homem mais rápido do mundo. Segundo Cristina Fonseca, diretora de marketing da companhia, a ideia foi reforçar a velocidade de ação, principal componente do analgésico, trazendo esse atributo personificado no campeão olímpico.

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“Advil é um medicamento isento de prescrição, mas ainda é regulado. Para trabalharmos mais oportunidades de falar com o consumidor, temos parceria com a área regulatória da empresa, do departamento jurídico e área médica. Essas três áreas atuam com a agência para pensarmos em mensagens criativas, que ajudem o consumidor a entender o benefício do medicamento, mas dentro do permitido na categoria. É um trabalho de muitas mãos”. A estratégia parece ter dado certo. Tanto é que a campanha desenvolvida pela Ogilvy Brasil foi estendida para Colômbia, México, Jamaica e Porto Rico.

A marca também acaba de realizar ação com influenciadores no YouTube. A ideia é que um desafie o outro a fazer alguma atividade em menor tempo possível. “As pessoas buscam soluções rápidas porque não podem ficar com dor por muito tempo. A Joice Tamura, por exemplo, fez uma maquiagm em 10 minutos, e foi top trending. Estamos em busca de um outro tipo de alcance e de engajamento. Trabalhamos o atributo velocidade como benefício do produto com outra abordagem”, explica Cristina.

Construção de marca

Em junho deste ano o anúncio de que Claudia Leitte tiraria seu sobrenome foi um dos principais assuntos nas redes sociais. A notícia, no entanto, foi ação de guerrilha da Santa Clara para promover o Perlatte, suplemento da Eurofarma para quem tem intolerância à lactose. No mesmo dia, a cantora explicou a brincadeira em vídeo, chamando a atenção para o problema.

 

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Rapidamente, o assunto voltou a gerar buzz na internet. “A gente é bom em construir marcas. Fizemos isso para Quem disse, Berenice? e cervejaria Colorado, e não enxergamos diferença no trabalho para a indústria farmacêutica, com Neolsaldina”, destaca Ávila. “Do ponto de vista de marca, as empresas precisam ter vida. Tanto que Neosaldina deixou de ser marca de remédio, se tornando a Neosa, uma pessoa no imaginário do consumidor”.