Quem me conhece, sabe que eu gosto muito de cozinhar. Mas eu nunca tive aulas de culinária. Então, como é que eu faço uma comida gostosa? (Pelo menos, dizem que é gostosa, né?) É porque eu gosto de comer. Gosto dos sabores das coisas. 

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Uma vez, uma amiga minha da Bahia disse que tem muito de alquimia na cozinha, e isso é verdade. A cozinha é muito alquímica, assim como a inspiração.

Toda vez que eu penso – e olha que já me fiz essa pergunta muitas vezes – no que me inspira, de onde eu tiro inspiração, eu me lembro da Bahia, de onde vim. Na Bahia, a gente gosta muito de misturar a comida no prato. A feijoada gostosa é aquela feijoada que você serve um pouquinho de feijão, arroz, farofa, um pouquinho das carnes e mistura tudo com pimenta. Fica aquele massapê gostoso, diferente. Isso vale para risoto, macarrão, mexidão. A cozinha misturada é a cozinha mais gostosa que eu conheço. Tem gente que gosta de uma coisa mais certinha, mais separadinha, mas, sei lá… Eu aprendi a gostar de coisa misturada. E agradeço por isso.

Para mim, inspiração é essa mistura toda, essa alquimia. Inspiração é olho aberto. É você ter duas vezes mais capacidade de olhar, duas vezes mais capacidade de ouvir, duas vezes mais capacidade de cheirar. Porque tudo que você recebe no corpo você tem em dobro: você tem dois olhos, dois ouvidos, duas narinas.

Você não tem duas bocas, mas tem milhares de papilas gustativas para cada uma sentir um sabor e esse somatório lhe dá um todo. E se você tem uma boca só é para falar metade do que você escuta, do que você ouve, do que você cheira, do que sente. Acho que inspiração é assim, como o corpo humano mostra.

Nessa mistura toda, estão na minha cabeça exposições incríveis que já vi no Moma em Nova York, ocupando o mesmo espaço que aquela viagem para Caruaru, quando toquei repente no pandeiro com um feirante. Ter jantado num restaurante maravilhoso na Europa para mim tem um sabor tão especial quanto um acarajé inesquecível – tudo isso é influência. O que me inspira é esse grande liquidificador da vida, essa grande batedeira, é como um grande bricabraque de tudo o que vivi em minha vida.

Inspiração é diretamente proporcional ao repertório que você tem. Tem gente que não sabe, mas eu me formei em engenharia e isso deve ter acrescentado enormemente em minha forma de ver a vida, porque é óbvio que ter estudado Cálculo I, II, III e IV, de algum jeito, impregnou em meu jeito de viver. Tudo isso são filtros que te ajudam a criar, a construir a criatividade que a vida te apresenta.

Eu acho que todo mundo é criativo, todo mundo tem a capacidade de ser criativo. O que talvez as pessoas tenham seja menos filtros, menos repertório. Por isso, a importância de degustar o máximo que a vida pode te oferecer. Eu acumulei um monte de filtros em minha vida e ainda quero acumular muito mais; quero aprender muito mais para poder ver a vida com olhares diferentes. Isso não significa viver tudo o que eu seja capaz de criar – não é porque eu não vivi a necessidade de usar absorvente, que não possa criar alguma coisa para o produto. É menos o que viveu e mais o que você viu, sentiu, acumulou. É o que te deu capacidade de olhar com os olhos de alguém.  Você só consegue isso com repertório. 

Eu acho que Chico Buarque é um grande cantor da alma feminina porque ele não canta a alma feminina, ele canta como se a alma feminina fosse. Ele teve a capacidade de beber da vida, acumular repertório para ver a vida com o filtro de um olhar feminino. Ele vê a vida como uma mulher; não vê a vida como uma mulher veria, ele vê a vida como se mulher fosse. Acho que o segredo é esse: ser intenso como Chico é para a alma feminina, em tudo. É viver, viver, viver, viver e viver.

Sérgio Valente é diretor de comunicação da Globo