Alê Oliveira

O mercado publicitário brasileiro, que tem nas agências de propaganda uma base indispensável, volta a ficar ameaçado de rebaixa oficial nas taxas de remuneração das mesmas.

Esta edição do propmark, em matéria assinada por Kelly Dores, que gerou a principal chamada de capa (manchete), informa sobre um processo administrativo do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) contra o Cenp (Conselho Executivo das Normas-Padrão), aberto há uma década para investigar eventuais procedimentos que prejudicariam a competição entre agências, que voltou a ganhar músculos nos últimos dias.

Isso se deveu a uma carta da ABA (Associação Brasileira de Anunciantes) respondendo a ofício do Cade, questionando os envolvidos no processo administrativo de forma a dar combustível à investigação do mesmo.

Causou estranheza no segmento das agências, as baterias novamente direcionadas a estas, desta feita condenando o princípio geral da sua remuneração contido nas Normas-Padrão, que estabelecem a retenção, pelas agências, do desconto de 20% concedido pelos veículos sobre a mídia autorizada por elas em nome dos seus clientes-anunciantes.

Como se recorda, no Brasil inicialmente a taxa de remuneração era de 17,65% sobre o líquido das faturas dos veículos, que concediam um desconto de 15% sobre as tabelas às agências de propaganda. A aplicação dos 17,65% retornava o valor total ao preço cheio das faturas dos veículos.

Essa praxe foi importada dos Estados Unidos, por ter este país disciplinado essa questão antes do Brasil.

Posteriormente, as agências – que passaram a prestar outros serviços aos anunciantes além da criação de anúncios, comerciais e campanhas e planos de mídia para os mesmos – lutaram por reivindicar dos veículos o desconto de 20%, demorando porém para se apropriarem integralmente desse percentual a título de honorários.

Com a Lei 4680/65, que açambarcou no seu bojo as Normas-Padrão, ficou oficialmente instituída a remuneração de 25% sobre o líquido das faturas de veiculação para as agências. Ou seja, os 20% do desconto dos veículos sobre mídia autorizada por meio das agências passaram a ficar integralmente para si a título de honorários (20% de 100 brutos é o mesmo que 25% de 80 líquidos).

A partir daí, passou-se a travar uma batalha entre anunciantes descontentes com as disposições do então novo diploma legal, que oficializava a taxa de remuneração das agências na equivalência do desconto concedido pelos veículos quando a publicidade era por elas autorizada em nome dos seus clientes-anunciantes.

Alegavam alguns líderes desse movimento dos anunciantes, como o saudoso Avelar Vasconcelos, da Nestlé, que o novo diploma legal havia surgido por trabalho de bastidores do segmento das agências.

A luta se acirrou quando os anunciantes passaram a constatar que as agências melhoraram em muito não só os serviços prestados, como também suas instalações, propriedades e – o que para eles foi difícil de engolir – os novos ricos proprietários de agências, que passaram a velejar em seus iates nos fins de semana e a ostentar carrões de alto luxo importados e construírem grandes piscinas em suas novas mansões.

Pelo menos, era isso que alegam os seus detratores responsáveis pelo setor de propaganda (o marketing ainda engatinhava) de grandes anunciantes.
Essa briga parecia não ter mais fim, com os donos de agências lembrando aos insatisfeitos, memoráveis campanhas criadas por suas equipes regiamente pagas que, além de produzirem resultados imediatos de aumento de vendas do que era anunciado, valorizavam em consequência suas marcas.

Ou seja, se ficamos ricos (os agentes), suas empresas aumentaram em muito o seu patrimônio graças ao talento dos primeiros.

O embaraço maior, segundo alguns historiadores da época – entre os quais este editorialista –, residia no fato de os encarregados pela publicidade dos anunciantes serem seus funcionários, com níveis salariais equivalentes aos da linha de gerenciamento nessas empresas.

Em outras palavras, o “dono” da conta dentro do anunciante passou a ter um padrão de vida extremamente desigual com o padrão de vida do dono da sua conta dentro da agência, que nem sempre era o dono da agência (para ficar ainda mais gritante o inconformismo).

Essa é uma parte dessa longa batalha, em cuja história não faltam folclores. A outra parte – talvez mais grave – teve início no meio das próprias agências, com muitas delas oferecendo-se para atender anunciantes com taxas de remuneração inferiores. Isso poderia caracterizar concorrência desleal entre elas e o fato passou a ser explorado sob esse argumento, não apenas pelas agências que se sentiam prejudicadas com a concorrência desleal, como também por alguns representantes de anunciantes, que leram Maquiavel na sua juventude e gravaram um dos seus princípios: dividir para governar.

Na tentativa de pôr fim ao duradouro conflito, criou-se o Cenp, inclusive com o apoio irrestrito da ABA. A nova entidade recebeu o apoio unânime do mercado, já que todos nela enxergavam a possibilidade de uma paz duradoura.

Mas, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como já previa nos anos mil e quinhentos o bardo português que com apenas um olho enxergava mais do que a maioria dos seus contemporâneos com dois.

Novas estruturas de marketing foram criadas nas corporações, novas agências foram abertas (e muitas fechadas ou vendidas), teve início a revolução digital e toda a paz obtida momentaneamente com o advento do Cenp passou a ser ameaçada.

A atual crise econômica brasileira, atingindo em números que se situam entre 30% e 40% as verbas publicitárias, foi a nosso ver o fósforo riscado por um dos lados, reacendendo a velha chama.

Voltam à discussão inclusive as BVs, que grupos de anunciantes da geração passada reclamavam para si (no todo ou em parte) e cuja argumentação atual ainda carece de construção.

A realimentação do processo administrativo há anos estacionado no Cade, com a ABA questionando as Normas-Padrão, pode significar uma Segunda Grande Guerra, considerando-se a anterior, lá atrás, como a Primeira.

A pergunta da jornalista Kelly Dores na ampla matéria sobre o assunto nesta edição, querendo saber o que muitos do mercado se perguntam, ou seja, como esse mercado funcionaria sem as Normas-Padrão, o editorial atreve-se a prever: será o caos instalado por ninharias, em um dos poucos setores da atividade empresarial brasileira que funcionam a todo o vapor e de forma progressista, gerando consagrados lucros para as marcas dos anunciantes e, de quebra, proporcionando ao Brasil um reconhecimento no Exterior que nem mesmo a Seleção de Futebol tem proporcionado.

Na comunicação do marketing mundial, o Brasil hoje é respeitado como um verdadeiro campeão. Se mudarem as regras do jogo aqui dentro, retrocederemos pelo menos cem anos na atividade publicitária e os anunciantes, beneficiados pela expertise de hoje desse importante setor, rogarão pragas aos black blocs que em seu nome atearam fogo na atividade.

Armando Ferrentini é diretor-presidente da Editora Referência, que edita o propmark e as revistas Marketing e Propaganda