Palavras têm poder, sobretudo aquelas que foram escritas e publicadas. É escrevendo que nós registramos o pensamento crítico de uma época, que escrevemos leis e marcamos momentos históricos. Durante a Idade Média, a forma mais comum de escrever leis e registrar o pensamento crítico da época era fazendo uso de pergaminhos, pedaços de pele de animal que eram preparados para receber aquilo que precisava ser escrito e guardado. Porém, fazer um pergaminho tinha um custo alto e não era possível tanto espaço para registrar tantas opiniões, que se desenvolviam desproporcionalmente aos pergaminhos na Idade Média.

Uma prática adotada entre os séculos VII e XII tentou facilitar a criação de novos espaços para escrita e criou um novo jeito de registrar pensamentos da época. O palimpsesto, do grego antigo παλίμψηστος, “aquilo que se raspa para escrever de novo”, era um pergaminho que tinha seu texto apagado para que novos registros fossem feitos. Isso gerou um problema na história da humanidade. Com tanto manuscritos apagados, parte da sabedoria e do pensamento crítico da Idade Média se perdeu. Algumas leis que hoje nem fazem mais sentido, também.

A edição nº 2674 do PROPMARK não foi escrita em pergaminho. Ela foi impressa em papel proveniente de fontes responsáveis, tem selo da FSC e do CENP e traz alguns dados interessantes que não foram necessariamente escritos, como por exemplo:

Das 23 fotos de profissionais do mercado que aparecem sozinhos dentro do conteúdo editorial, vimos o rosto masculino 18 vezes. Apenas cinco vozes femininas foram consideradas como fonte para falar em um mercado que tem 57,5% dos postos de trabalho ocupados por mulheres.

A capa da mesma edição celebra o dia mundial da propaganda (4 de dezembro) chamando para a matéria principal, que fala sobre os desafios que a atividade vem enfrentando nos últimos anos. Vide, o crescimento das consultorias de inovação, o questionamento da performance criativa e da abordagem de negócios baseada no século passado.

Por falar em século passado, todo esse cenário de falta de representatividade já foi pior. Não só aqui no PROPMARK, como em toda a história da publicidade no Brasil, dentro das agências e nas peças publicitárias que foram para a rua. Isso virou tema da minha pesquisa no mestrado e do meu TEDtalk, onde eu conto a história da publicidade pelo viés social e culturalmente violento com as mulheres e sobre a procura por um ponto final nessa violência, que não vem só em eliminar a imagem sexualizada concebida ao longo dos anos, mas também do uso da linguagem com a mesma intensidade.

Exemplo rápido disso foi que em 2016, um dos meus textos desencadeou uma avalanche de questionamentos sobre um dos leões entregues em Cannes à uma campanha que tinha apenas uma frase – e que conseguiu ser tão violenta quanto as representações das mulheres nas campanhas de cervejas dos anos 2000.  

Palavras têm poder e o texto de fechamento da edição dessa semana do PROPMARK trazia o título: Assédio. Por um minuto imaginei que teria relação com a poderosa pesquisa realizada pelo Grupo de Planejamento com mais de 1400 pessoas do mercado publicitário de São Paulo e revelou que 90% das mulheres respondentes já sofreu assédio moral ou sexual dentro das agências de publicidade. Mas não.

Foi uma forma muito confusa de falar sobre assédio e que não consegue se resolver ao olhar do leitor. Talvez a falta de cuidado com o título. Talvez a falta de um p.s. sobre a ironia…(se é que houve), talvez um ponto de vista equivocado e romantizado de uma situação clara de assédio. São muitos “talvezes” que não conseguiram se resolver e confundiram ainda mais a opinião pública, tornando a discussão sobre o texto um eco na imensidão, respondida com uma nota simples do jornal  (que se isenta da responsabilidade sobre a opinião do autor) dizendo que o ele “usou do seu direito universal de liberdade de expressão”.

Estamos em 2017 e o pergaminho só continua em uso para aqueles que querem seu diploma universitário gravado em pele de animal (?). Hoje registramos o pensamento crítico da época em plataformas digitais, acessíveis à bem mais pessoas que os antigos pedaços de couro.

E por mais tensionada que eu e muitos outros profissionais de comunicação estejamos para pedir que o texto seja apagado do site do PROPMARK ou de fazermos uma “palimpsestação” digital do texto publicado, ele precisa ficar aqui para que a gente não esqueça que estamos em 2017 e esse é um registro do pensamento crítico da época. Para que não vivamos em bolhas confortáveis de micro mudanças e para mostrar que o maior desafio que o mercado publicitário está enfrentando, não se chama tecnologia ou big data, ele é um pronome conjugado em primeira pessoa do plural: NÓS.

Nós que somos cada vez maiores e questionadores. Nós que não nos silenciamos mais. Nós que não problematizamos pelo individualismo, mas pelo plural que só cresce a cada denúncia de assédio moral e sexual no mercado publicitário.

Nós não vamos parar.

Ana Paula Passarelli é consultora de inovação e negócios digitais, ajuda empresas a desenvolverem seu potencial “creator” nos negócios. TEDxSpeaker e Mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP onde pesquisa a representação de gênero na publicidade brasileira