E se no futuro a mídia não puder mais contar com a publicidade para sobreviver? A febre dos “adblockers” nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, além da queda de investimentos em boa parte das mídias ao redor do mundo como jornais e revistas, levou o principal jornal dedicado ao trade publicitário do mundo, o Ad Age, a dedicar uma extensa reportagem, publicada na semana passada, sobre como seria o mundo sem publicidade. No especial, intitulado “imagine um mundo sem anúncios”, os vilões são principalmente os consumidores, que não querem mais ver seu conteúdo recheado de publicidade.

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Simon Dumenco, que assina a matéria, provoca logo no começo: “Quanto custaria o conteúdo sem a publicidade para subsidiá-lo?”. A reportagem foi uma espécie de alerta e puxão de orelha publicada para ser lida durante Advertising Week, evento promovido ao longo da semana passada. Curiosamente, na mesma edição, o Ad Age revela sua lista de 16 profissionais de mídia de destaque, os “Media Mavens”, e perguntou a cada um deles: “você pula anúncios?”. Ironicamente, a grande maioria confessa que sim.

O trabalho sobre o mundo sem anúncios comenta um curioso comercial do serviço de vídeo online Hulu, que divulga sua opção “sem comerciais”: nele, um elegante senhor anuncia a novidade sentado em uma poltrona e tendo ao seu lado uma lareira e móveis bem tradicionais, sendo que está ao ar livre, num cenário um tanto quanto pós apocalíptico. Uma ironia, talvez, com o que poderia de fato acontecer em um mundo sem publicidade?

A Apple anunciou recentemente sua decisão de apoiar aplicativos IOS que bloqueiam publicidade em seu browser Safari. A notícia é preocupante. A matéria revela, por exemplo, que alguns sites dedicados ao público jovem perderam 40% de seu faturamento publicitário devido ao bloqueio de publicidade. Outra conta simples na reportagem: imagine se, de uma hora para outra, saíssem de cena US$ 592 bilhões (dados do eMarketer) que os anunciantes pretendem investir mundialmente neste ano? O jornalista brinca: haveria um bocado de diretores de criação se tornando motoristas do Über. E a imaginação vai longe: a Times Square, em NY, completamente apagada. O recado para os chamados “Ad Haters” (os que odeiam propaganda) é claro: em um mundo sem publicidade, quem paga a conta… é você.

Uma assinatura digital do NYT custaria, por exemplo, US$ 334,00 por ano, presumindo que nenhum leitor cancelaria a assinatura ao ter o aumento significativo em sua conta. No caso da TV, a oferta seria significativamente reduzida. Os serviços não poderiam oferecer tantos programas aos seus usuários.

Curiosamente, até mesmo mercados em que as pessoas pagam taxas para subsidiar a mídia sem propaganda – caso da BBC, da Inglaterra – sofrem com a queda no pagamento dos subsídios. O Ad Age fez uma conta simples, em que cada americano precisaria pagar, para ter acesso a tanta programação, sem nenhuma publicidade, uma conta anual de US$ 1.800 de TV por assinatura. Ou talvez se pudesse pagar um pacote especial por US$ 1.200 com cerca de 12 canais sem publicidade, entre eles alguns de qualidade bem sofrível.

O Facebook é outro exemplo interessante: o seu faturamento no último trimestre foi de US$ 4 bilhões e quase tudo vem de publicidade. Ao distribuir a conta entre os seus cerca de 1,49 bilhão de usuários ativos, cada um deles teria de pagar cerca de US$ 12 por ano para ter acesso ao serviço. O problema é que todos precisam concordar em pagar. No mundo todo. Quem garante?

E imagine o que não seria dos milhões de sites de conteúdo absolutamente inútil que as pessoas consomem apenas porque eles são gratuitos? O Ad Age dá o exemplo do BuzzFeed, um dos mais lidos nos Estados Unidos – talvez no mundo – com matérias que são tão inúteis quanto “Quem você deveria namorar com base nas suas escolhas no Netflix” ou “Por que o café dá vontade de ir ao banheiro”.

Imaginação

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No Brasil, a discussão dos Ad Blockers ainda não é tão intensa. Mas também há problemas. Em um seminário recente sobre mídia promovido pela Associação Brasileira de Anunciantes do Rio (ABA-Rio), o publicitário Leonardo Brossa, da agência Quintal, brincou que comprar mídia parece ter virado um ato “proibido”, em um cenário de supervalorização da chamada “no media”, em que o que vale nas estratégias de publicidade é o compartilhamento orgânico.

“Parece que criaram um décimo primeiro mandamento que diz: não comprarás mídia. De repente tudo deve ser orgânico, as campanhas devem se apropriar da força do conteúdo, mas esquecemos que comprar mídia é essencial para viabilizar projetos consistentes”, disse.

A brincadeira passa por uma questão crucial nos dias de hoje: o discurso de que chegamos ao fim da era da interrupção. O consumidor não quer mais ser interrompido. Quer acessar seu conteúdo sem a chatice de ser distraído por alguma sugestão de venda de alguma empresa. Quer assistir a seus filmes sem breaks comerciais. E o contato com as marcas deve se dar de maneira sutil, orgânica, quase imperceptível. Esse cenário vem dando um verdadeiro nó na equação financeira das empresas de mídia – e na cabeça dos publicitários. Como lidar?

Brossa fala que vivemos dois movimentos distintos, mas que se esbarram e preocupam quem trabalha no meio. “De um lado as pessoas acreditam que todo conteúdo deve ser free. Pessoas que amam cinema, mas não estão dispostas a pagar para ver os filmes e assistem via popcorn time. Pessoas que querem notícias e colunistas de qualidade, mas não estão dispostas a pagar pela assinatura dos jornais e blogs. Desse mesmo lado, ou próximo dele, estão as pessoas que se tornaram intolerantes à publicidade, usam ad blocks, reclamam dos intervalos comerciais, mas querem continuar tendo acesso às notícias, opiniões e programas, ignorando que existe um custo de produção. E aí, como faz? Como fechamos essa conta?”, questiona Brossa.

Segundo ele, esse ambiente contamina a todos, inclusive o mercado como um todo. “Passamos a acreditar que publicidade é o mal da humanidade. É intrusiva. Clientes e agências acreditando que dá pra comunicar tudo de forma orgânica. Mas… não dá. O native advertising é quase contraditório, pois você paga pra ser native. Vamos precisar reeducar as pessoas. Usar nossa criatividade para mostrar que não existe, de verdade, o tal almoço grátis”, observa o publicitário. 

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Michel Lent, sócio da LentAG, imagina que menos ou nenhuma publicidade significa menos conteúdo, estruturas e redações ínfimas. Cinema e séries seriam pagos apenas por assinaturas. “Um mundo sem publicidade impactaria praticamente todos os segmentos do nosso mundinho capitalista”, analisa.

Sobrevivência
Jorge Nóbrega, vice-presidente executivo do Grupo Globo, fala que, de cara, sem publicidade, o Google quebraria, pois sobrevive de publicidade. E tenta imaginar o cenário da TV sem publicidade. “A TV Aberta não acabaria, pois ela (TV Globo, principalmente) é a maior audiência, by far, entre os canais das plataformas pagas. Acontece que ela custaria bem mais caro do que custa hoje para as operadoras, que precisariam abrir mão de outros canais. Por outro lado, os pacotes de TV por assinatura como um todo iriam encarecer se as programadoras tiverem de abrir mão da publicidade”, diz. Menos canais, menos conteúdo, menos diversão. Parece um cenário bem chato.

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Daniel da Hora, diretor da DH,LO Creative Consultancy, aposta num cenário pós apocalíptico de poucas opções de nicho, o fim de jornais impressos e revistas semanais, a internet como um serviço premium com preços específicos por pacote e conteúdos para tablet a preços bem salgados, também.

Mário Barreto, sócio da produtora Imagina Produções, foi um dos pioneiros da internet brasileira – fundou o provedor Easynet – e lembra que em 1995 cobrava-se por quase tudo, até por e-mail. Cada simples serviço usado era cobrado. A chegada da internet grátis bagunçou o cenário: nos EUA as pessoas até ganhavam computadores, desde que navegassem via certos portais.

“Nesse meio-tempo criou-se uma geração que não paga por nada, como se conteúdos, programas, notícias, novelas e seriados brotassem do éter. É um grande desafio. Os custos de produção caíram. Um iPhone é praticamente um estúdio completo. Mesmo assim, há custos. Ou a sociedade aprende novamente que não há almoço grátis ou um novo modelo aparecerá”, comenta.

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Gui Jahara, CCO da F.biz, arrisca dizer que sem publicidade “acabaria tudo”. “As pessoas comentam que não gostam de publicidade, mas é ela que move a economia. Ninguém gostaria de pagar para entrar no Facebook. O conteúdo do Face, pago, se tornaria irrelevante, porque só serve se for gratuito”. Jahara enxerga um mundo sem publicidade pouco imaginativo e menos lúdico. Sem competição, com menos produtos. Os influenciadores concentrariam os grandes faturamentos no lugar dos veículos: só a eles caberia o direito de “anunciar” as marcas e postar suas dicas para milhões de pessoas. “Isso, aliás, já está ocorrendo”, conclui.

O consultor de mídia Luiz Novaes comenta que o mundo já vem pagando por conteúdo relevante e acredita que os veículos podem prosperar apenas com retorno de assinaturas, apoiando-se na credibilidade de suas marcas na web. TV aberta, OOH e rádio são modelos que dificilmente sobreviverão sem publicidade, ele opina. “Com a ausência de propaganda, o maior risco para a sociedade seria concentrar entretenimento e informação nas mãos apenas de quem pode pagar por isso. Já pensou? O futuro, como dizem os chineses, ‘veremos’”, conclui Novaes.