Adoro um retrato. Não selfies, não, nada que seja feito para enviar para alguém simplesmente para contar uma vida que não vivo ou uma felicidade que não tenho. Mas um retrato, daqueles de papel, que se coloca numa moldura e se espalha pela casa, se coloca na mesa do escritório ou se leva na carteira (nunca no celular), mas que realmente são documentos da vida que vivemos. Na minha casa, na minha sala no escritório, vivo cercado de mim, para que eu não me esqueça. São imagens que me olham, eternizadas e imunes a pastas digitais. Nas minhas fotos que eu posso olhar quando levanto os olhos, as mulheres não envelhecem, os amigos não se afastam, há sempre sorrisos, abraços e festas. E o que é melhor: nunca foram postadas, porque existem só para mim. São retratos mesmo, que eu escolhi, mandei virar algo palpável e coloquei na moldura.

Nesses painéis da minha existência me perco entre amores, pessoas e momentos que perdi, mas que olham para mim, para que eu acredite que há algum sentido no que fiz da minha vida. Uma tentativa de congelar a esperança de que as coisas boas perdurem, como um sorriso de filho, um olhar amoroso. Olhando atentamente minhas fotos penso se meu irmão espanhol, já morto, hoje milagrosamente vive num instantâneo colorido, minha mulher me mandando um beijo, minha neta no balanço, são uma lição do que é a vida: alguns poucos segundos para se guardar, num monte de tempo que podem ser jogados fora. Não dou um caracol por este monte de besteiras do que acabo de escrever, mas quando vejo o mais importante museu histórico do país virar cinzas e se transformar em motivo para a política mais rastaquera, essas fotos me lembram apenas que, apesar do que possa acontecer, algumas vezes – poucas – a vida vale a pena.

Na maioria das vezes podem durar algum tempo, mas seu destino é o da Luzia: um dia vira pó, mesmo que resista por milhares de anos. Outra coisa que tenho feito é escrever sobre momentos gloriosos da vida, com o cuidado de não fazer relatos biográficos me transformando em mais do que sou, nem para o bem nem para o mal. Ser isento com qualquer pessoa já e difícil, imagine com você mesmo, mas vou tentando. É bem verdade que a maioria das vezes eu anoto apenas trechos de vida, alguns para ler sozinho no supremo ócio que a idade me obrigará um dia, outros para servir de inspiração para estas crônicas que faço toda a semana, há dezenas de anos, para minha honra e sua paciência. Semana passada mesmo achei anotado num papel timbrado de minha agência uma história protagonizada pelo Miele, que defendia uma ideia, contra todos que a achavam absurda. O Miele ainda estava vivo, logo o fato é bastante antigo. Mas o que valeu a anotação foi que a celeuma invadiu a noite e serviram-se alguns uísques, a pedido do próprio Miele, que sempre considerou o malte um estímulo cerebral superior a qualquer outro. Até que, vendo que ninguém concordava com ele, deu um murro na mesa e concluiu: “vamos fazer o seguinte. Eu estou muito teimoso. Fiquem aqui e eu vou à merda”. E saiu, majestático.

Outro, não sei a fonte, foi uma reação de um colega após uma apresentação de campanha que eu tinha feito, usando e abusando do que eu considerei uma aula de retórica. Perguntei se eu estivera bem. Ele foi sucinto: “Excelente. Para ser o Ratinho só faltou a ignorância!” Tenho notas em guardanapos de papel, uma delas um hay-kay de Millôr Fernandes: “Meu sonho é mixo/ter a felicidade/que os outros põem no lixo”. Outro papelucho tem um versinho de um tal de Cezar Miranda, dizendo: “Um sim/Assim tão vão/Não é sim/É não”. Você deve estar percebendo que estou melancólico. Nada mais justo. Dentre meus retratos tem um que é retrato/bilhete. Na foto somos uma sobrinha, minha filha, minha mulher e eu vestidos de mangueirenses, com a camiseta da Ala Amigos do Chico, no ano que a escola foi campeã, com um agradecimento de Kika, a sobrinha mineira. Escreveu ela: “Obrigada por uma das noites mais alegres de minha vida. E pelo maravilhoso passeio no Museu da Boa Vista. Um beijo para você e Silvana. Nunca vou esquecer desta ida ao Rio”. Não esqueça, Kika, não esqueça. Que fique na sua memória, pois o museu pegou fogo.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)

Leia mais
O posicionamento das agências
Modismos pouco consequentes