Se você, meu leitor querido, minha leitora amada, se lembrar que já leu esta crônica, escrita no calor dos acontecimentos, aceite meus agradecimentos sinceros. Pela fidelidade e pela memória. Mas como só existem dois assuntos sobre os quais vale a pena escrever, acho que vocês perdoam que eu repita esta historinha, já que estou escrevendo no último dia 19, e tudo que eu possa pensar ou registrar sobre Copa do Mundo pode ficar ridículo no dia seguinte. Então fiquemos em Cannes. Foi aqui que resolvi parar de beber. Pelo menos esta foi a notícia que dei para minha mulher no hotel quando voltei do meu primeiro dia como jurado do festival.

A reação de Silvana transitou entre a euforia e a estranheza. O que teria feito este cara, no seu primeiro dia como jurado, num ambiente tenso como o de um júri internacional, tomar uma decisão tão radical? O que aconteceu naquele palácio, guardado por seguranças armados, afastado do mundo, que pudesse ter alterado completamente a visão de vida desse indivíduo? Qual o trauma que causou esta decisão tão radical? Neste ambiente de estupor e dúvida, consciente da profundeza de minha declaração, atravessei a sala de nossa suíte, no ritmo do drama causado pela entrada melodramática, abri a geladeira e me servi de uma taça de um Pomerol, que desde manhã me esperava. Minha mulher teve, naquele minuto, a certeza absoluta que eu – finalmente – tinha ficado louco. Entendo a reação da moça.

Ela achou que a tensão me tinha levado à ruptura definitiva: eu finalmente saíra do ar. Só um doido declararia com toda pompa que tinha tomado a decisão de parar de beber e comemorava a atitude abrindo uma garrafa de vinho. “Ele agora foi”, deve ter pensado Silvana, já imaginando que minha próxima providência seria sair voando pela janela. Pessoa sensata nessa hora não cria polêmica. Ganha tempo, na espera de que um mínimo de bom senso acabe florescendo. “Lula – disse ela – como foi seu primeiro dia de júri?” Nessa altura, percebi, a pergunta era uma manobra diversionista, uma retórica, destinada apenas a ganhar tempo. O ponto crucial era a afirmação categórica da mudança de um hábito, num momento aparentemente inoportuno. Não é em Cannes que se resolve deixar de beber. Mas me deixe contar então o meu primeiro dia como jurado. Daí vai ser possível entender tudo.

Chegamos ao Palais e fomos conduzidos a uma sala onde receberíamos o briefing
de nosso trabalho, explicado pelo próprio presidente do festival. Éramos uns 20, de muitos países, de primeiro, segundo e Terceiro Mundo, falando inglês nos mais diversos matizes e acentos, quase todos com uma qualidade que faria Oscar Wilde morrer outra vez. No speach de abertura, ele explicou o funcionamento dos trabalhos, as facilidades, os recursos tecnológicos, os horários, inclusive das refeições, já que ninguém é de ferro e, afinal, a gente estava na França. Teríamos comida como num transatlântico: o dia inteiro, com intervalos para refeições mais sérias. E o menu atenderia a qualquer gosto, hábito ou desvio de conduta.

Teríamos à disposição preparações macrobióticas, vegetarianas, indianas, kosher, internacionais. Acho que havia até acarajé e pato ao tucupi. Cobras e lagartos. Como detalhe, o chefão avisou que “evidentemente não servimos bebidas alcoólicas”, sem causar nenhuma surpresa, pois até segunda ordem a gente estava lá para julgar, não para encher a cara. Pelo menos durante o horário de trabalho. Pois foi no primeiro intervalo, no bufê, que descobrimos que poderíamos nos servir à vontade de uma sensacional seleção de vinhos. Tintos, brancos e rosê. Ué, mudaram o regulamento? Na hora do almoço, os garçons borboleteavam pelas mesas enchendo com generosidade as taças no mesmo tempo em que eram esvaziadas. O duro era encontrar Coca-Cola. Tinha também água Perrier para os radicais. Mas o forte mesmo era o vinho, consumido com toda alegria. Não foi preciso muito tempo para concluirmos: para os franceses, vinho não é bebida alcoólica. Foi neste instante que eu tomei a minha decisão. Iria parar de beber. E brindei a mim mesmo com uma dose de um espetacular Borgonha. Estou assim desde aquele dia. Uma questão de força de vontade.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)

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