Em visita ao país, José Papa falou que, independentemente de ser brasileiro, qualquer pessoa no seu lugar teria obrigação de mergulhar no Brasil, “que sempre teve papel preponderante no festival”. O executivo também falou sobre desafios, expectativas e disse que este será um ano de consolidação dos festivais especializados. Confira a seguir os principais trechos da entrevista que o novo diretor-geral de Cannes concedeu ao PROPMARK.

Alê Oliveira

CONSOLIDAÇÃO
Este ano, para mim, obviamente, vai ser especial. A gente brinca que precisa participar de uma edição para ter um batismo de fogo e realmente fazer parte do mundo Cannes Lions. Eu já participei muitas vezes como cliente e delegado, mas nunca liderando. Este vai ser um ano especial também por referendar essa transição que a gente está vivendo, pelo momento de mudança na organização. A organização como um todo mudou, desde o IPO do Grupo Ascential, no início do ano passado. Será um ano muito importante de consolidação de uma série de iniciativas que o festival começou há cinco anos, lançando o Lions Health, o Lions Entertainment e o Lions Innovation.

EXPECTATIVAS
As expectativas são muitas. A gente continua obviamente com o objetivo de honrar o legado, a essência, a santidade do Leão, mas tem muita coisa acontecendo, muitas ideias novas que estão surgindo, focando sempre nos quatro pilares: aprendizado, inspiração, networking e celebração. Por exemplo, vamos trabalhar com uma plataforma que permitirá que o networking seja muito mais profundo. Vamos fazer um trabalho, antes do evento, visando integrar as pessoas por afinidade. É uma plataforma que trabalha não só na interconexão com as pessoas, mas por afinidade. Estamos relançando o nosso app de uma forma muito mais organizada, já com uma interconexão com toda a nossa estratégia editorial. A gente tem produzido muito conteúdo próprio. O nosso app remodelado vai permitir que a pessoa organize sua vida muito melhor durante a semana e interaja com o mundo Cannes Lions de forma mais efetiva antes e depois do festival. Este ano vamos fazer o segundo China Day, o que mostra toda nossa motivação em acampar toda a criatividade na Ásia. Este vai ser um ano também fundamental de consolidação do braço de entretenimento, com um line-up sensacional mesmo. Houve um step change na proposta de conteúdo, já anunciamos alguns nomes, o principal foi o Jeffrey Katzenberg, fundador da Dream Works. Em Innovation, vai ter um negócio chamado ‘Discovery Zone’, em que estamos fazendo um trabalho de curadoria de seleção de 100 startups globais, que estão passando por um crivo detalhado para poderem participar desse espaço.

CRESCIMENTO
A decisão importante este ano foi de trabalhar na consolidação e crescimento orgânico de várias iniciativas. Desde a formalização do projeto de crescimento dos festivais especializados até o redimensionamento dos júris, porque a gente quer que o trabalho seja mais criterioso, organizado, que as discussões sejam mais profundas. Não lançamos nenhuma categoria este ano e não lançamos exatamente porque a gente entende que temos de responder a uma demanda que a indústria nos coloca. E não que não haja essa demanda, mas a gente entende que respondeu à altura na criação de novas categorias nos últimos anos. Reduzimos o número de jurados com o propósito de fazer com que o trabalho e o processo de análise sejam mais apurados. Acreditamos que com esse redimensionamento do júri vamos conseguir aproximar quem de fato vai participar do processo, fazendo com o que o processo seja ainda mais relevante. Para quem estará lá é ainda mais importante. Teremos um pouco mais de 300 jurados este ano, sendo que foram quase 400 no ano passado.

INSCRIÇÕES
As inscrições estão progredindo bem. A própria parte de inscrições de delegados também. O Brasil tem seguido conforme expectativa, mas existe uma grande esperança para 2018. O cenário começa a ser muito propício para o redimensionamento da participação brasileira no ano que vem, não que este ano será menor do que 2016. Acho que 2016 foi, provavelmente, o ano mais difícil para o Brasil como um todo. Eu estou bastante otimista, só vejo crescimento. A gente sempre quer ver o festival se desenvolver, crescer com uma proposta de valor bem clara, honrando o legado, trazendo os debates necessários para os desafios presentes, que a indústria nos coloca. O crescimento tem de acontecer com um propósito.

DESAFIOS
Acho que Cannes é um centro mesmo fundamental de debate global. O nosso principal desafio é mostrar o quão aderente Cannes é ao desenvolvimento de cultura, tendência, inovação e futuro. Mas existe no Brasil uma visão de que é um festival essencialmente de publicidade, quando é algo muito mais amplo. É um festival que reflete a evolução de toda uma indústria, de uma nova cadeia que se construiu com novos agentes, players, que transformaram o processo criativo. O nosso principal desafio é fortalecer a mensagem de que nós não olhamos em retrospecto, que somos uma plataforma de visão para o futuro, de definição de tendências, que os debates realmente redefinem cultura. Fiquei particularmente orgulhoso quando vi uma matéria da Veja que fala da questão do gênero na publicidade e o quanto a criatividade evoluiu para você não ter aquela objetificação crua do indivíduo. E esse debate nasceu em Cannes. Isso mostra que nossa proposta de valor está sendo aderente.

CONCORRÊNCIA
Eu não gosto de considerar concorrência com aquilo que tem modelos tão distintos. Respeito todos os festivais do mundo. O SXSW é um dos exemplos. Mas acho que são propostas totalmente distintas. O que cabe comparar é que as pessoas em Cannes discutem, vivenciam e tocam futuro, inovação, tendência, mas existe uma predisposição no Brasil de interpretar equivocadamente o que Cannes é. Muita gente acha que é inatingível estar em Cannes, mas não é. Uma das coisas poderosas que Cannes tem é o lado de networking. Você consegue naquele espaço de dias e num raio pequeno ter a conjunção daquilo que há de maior e melhor em criatividade. Então é importante estar lá, sim. Comparando com qualquer festival, são 64 anos de história. A gente define cultura popular. Muita coisa que se debate em Cannes vira mainstream.

BRASIL
Independentemente de eu ser brasileiro, qualquer pessoa que estivesse no meu lugar teria a obrigação de mergulhar no Brasil. Nosso país sempre teve papel preponderante no festival, por muito tempo foi o segundo em representação. Só é o terceiro agora por causa da crise. É natural que nós estejamos tão otimistas com relação ao Brasil, agora que a gente começa a sentir que o senso do consumidor mudou e a ter um horizonte um pouco mais claro do que vai acontecer. Mesmo nesse cenário deprimido, o país continuou a ter uma representação enorme para o festival. O brasileiro é criativo por natureza e historicamente o país evoluiu muito com Cannes Lions porque a essência do brasileiro é criativa. O brasileiro é criativo por natureza. E isso em Cannes é um privilégio.

ESCOLHA
Eu estou no grupo há cinco anos. Liderava uma das empresas que compõem o grupo. Acho que o meu nome surgiu pela necessidade de ter uma visão internacional, de conseguir navegar bem em diversas frentes, sendo o festival de Cannes tão diverso. Pela primeira vez, apostou-se numa liderança que não fosse britânica. Se o fato de eu ser brasileiro for trazer benefícios para o país, ótimo, mas volto a dizer que qualquer pessoa que estivesse no meu lugar teria obrigação de focar e ter o país como prioridade. Poder estar aqui, entender os problemas e falar em português com a indústria, é ótimo.

ASCENTIAL EVENTS
Eu e o Philip Thomas atuávamos como pares. Eu era CEO da WGSN e Phil, CEO do Lions Festivals. Com a abertura do capital do Ascential, todas as operações se integraram. Temos agora dois grandes braços: um braço de serviços de informação, onde a WGSN entrou, e um braço de eventos. Esse braço de eventos se chama Ascential Events. E Cannes Lions é um dos produtos do Ascential Events. E o Phil é CEO do Ascential Events. Eu reporto para o Phil, ele estará presente no festival, que é um dos principais para o grupo. Para mim é um privilégio trabalhar com ele.

ENTRETENIMENTO
A gente acredita que o braço de entretenimento é a próxima grande vertente da indústria. Acreditamos na nossa força em doutrinar a cultura popular por meio de storytelling e criatividade no contexto do entretenimento. Com tudo que está acontecendo: movimentações de AT&T, Time Warner, como as operadoras estão trabalhando com conteúdo, Amazon ganhando primeiro Oscar, TV paga com conteúdo on demand na internet e a inserção das marcas nesse debate do pre-roll ads do YouTube, acreditamos que Cannes é o lugar ideal para alimentar essa discussão.

MÁGICA
O fascinante de Cannes é que a gente nunca sabe o que vai acontecer de novo. E é isso que faz o festival tão mágico. Pelos tópicos que surgiram nas propostas de conteúdo, tem muita coisa ainda sobre diversidade, machine learning e inteligência artificial, mas os temas relevantes evoluem nos debates que são gerados lá. O festival sempre se renova.

NOVOS MERCADOS
A gente tem visto também o crescimento de outros mercados, com GPs vindos pela primeira vez da Rússia, Índia e China nos últimos anos. Vimos múltiplos Leões sendo entregues para Costa Rica, Guatemala e Líbano. A gente vê que o festival é muito mais abrangente, internacional. Mesmo que eu tenha esse viés de Brasil e sendo o país essa força de criatividade, há outros países na América Latina crescendo, como Equador, Colômbia, México e Peru. Isso mostra como a nossa missão está tocando mais e mais lugares. O nosso comprometimento com a América Latina é visível pelo próprio investimento que fizemos no nosso novo escritório em São Paulo. Nós acreditamos no Brasil.