Há muitos anos, para não dizer desde sempre, tenho ouvido das grandes lideranças criativas do mercado de comunicação que “este é o melhor momento para trabalhar na nossa indústria”. 

A resposta soa perfeita para os impactos de transição, principalmente nos ápices de fragmentação da mídia e nos cenários onde os desafios geralmente significam incapacidade de definir conceitos, misturada com um enorme leque de oportunidades para fazer a ponte entre marcas e consumidores.

No atual momento da realidade digital, o sueco Adam Kerj, Chief Creative Officer da Accenture na região dos países nórdicos e presidente do júri de Digital Marketing do D&AD 2019, repete o mantra do “melhor momento ser agora”. Mas é um agora bem complexo, ele mesmo reconhece, diante do próprio significado da palavra “digital” e diante do conflito que o mundo conectado com inteligência artificial e outras performances robóticas, incluindo problemas de invasão de privacidade, trava com a natureza do ser humano.

Depois de um trabalho online feito de forma remota com os demais integrantes do júri, tentando excluir do shortlist tudo que estava com “qualidade na média”, Kerj coordenou em Londres, nesta semana, os trabalhos presenciais que definiram os Lápis de Digital Marketing deste ano, que serão revelados nesta quinta-feira (23), no encerramento do festival.

Na entrevista a seguir, o criativo da Accenture fala sobre seu trabalho no júri e sobre a importância de um trabalho colaborativo para uma melhor experiência na vida digital.

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Conceitualmente, o que seria um trabalho digital com qualidade na média?

Acho que qualidade na média é quando se vê um trabalho com pouca ambição para mudar o comportamento ou atitude do consumidor, quando o approach é tradicional, tentando fazer que com que apenas a marca se saia bem e não oferecendo algo de fato relevante para o consumidor. Um bom trabalho digital sempre propõe uma alteração de comportamento, mesmo que seja o início de uma transformação de comportamento, que possa levar algum tempo para se concretizar. Este é o desafio de um trabalho que se destaca no ambiente digital seja lá o que for o significado de digital.

O que é digital?

Tudo, absolutamente tudo, é digital.

O ser humano tornou-se digital?
Sim, pelo menos o seu comportamento online é digital e aí, nós podemos ter você como target, então você tem uma persona digital.

Mas a onda de marketing agora é resgatar valores humanos. O marketing digital está realmente nesta direção?
Às vezes dá vontade de matar a palavra digital. Ela confunde as pessoas. Antes, sim, era comum termos uma campanha digital, mas hoje ficamos muito mais leais às experiências que as marcas nos proporcionam. Sim, estamos nesse foco centrado no lado humano, mas, na verdade, acho que isso também é um clichê. Se perguntarmos sobre o que realmente nos move, acredito que a resposta será que nós, humanos, estamos cada vez mais com maiores expectativas de experiência. Vamos dizer, por exemplo, que nós dois, daqui a um mês, estaremos com muito mais expectativas sobre a experiência que atualmente temos com uma determinada marca. Pelo fato de a tecnologia evoluir permanentemente, a expectativa sobre nossas experiências, como seres humanos, também aumenta o tempo todo.

As marcas conseguem acompanhar essas expectativas?
Eu vejo um pouco de mudança. Há boas marcas, eu acho, que conseguem perceber isso. Eu não tenho de ser leal a uma marca e sim, o contrário. É a marca que tem de ser leal a mim. Quais as marcas têm de fato essa estamina, a paixão e curiosidade de realmente me oferecer melhor experiência com ela? Como elas vão fazer minha vida mais interessante, a vida dos meus filhos mais fácil? É preciso de fato pensar na experiência de marca vendo um ser humano e não com aquele processo de jornada do consumidor, experiência do consumidor pois isso elimina o sentimento humano. Estamos acostumados a tentar alcançar o consumidor pela tecnologia e não pelos sentimentos humanos. Infelizmente, muitas marcas são muito invasivas e ultrapassaram todos os limites.

Quais marcas, por exemplo?
A indústria de viagens e muitas outras. No momento em que você demonstra algum tipo de interesse, elas não largam mais do seu pé, elas passam a fazer retargeting com você o tempo todo, literalmente te perseguem online. Acho que a inteligência artificial vai poder mudar isso, fazendo um trabalho digital com mais diretrizes humanas.

Mas será algo artificial que vai gerar uma diretriz mais humana?
A criatividade passa por uma mudança tectônica. Estamos no meio de um processo de redefinição de toda uma nova geração de criativos, que serão tipo unicórnios. Terão de ser talentosos em múltiplas tarefas. O modelo formado pelo redator, diretor de arte e planejamento está morto.

Por que as marcas são tão intrusivas?
Há um pouco de conflito de valores. Os seus dados, os dados do consumidor, do usuário, são a moeda do mundo digital, mas esse valor depende muito da transparência com a qual as marcas atuam. O valor não está proporcional. Ou as pessoas vão ficar cada vez mais assustadas ou poderão participar de um processo mais natural nesse mercado de valores. As grandes plataformas estão tirando muito mais do que dando de volta ao consumidor.

Se tudo hoje é digital, como separar em um festival, como o D&AD, o que é de fato marketing digital?
É difícil. No júri, tivermos de levar em consideração sobre o que é o ambiente digital e questionar sua própria relevância pois tudo é marketing digital. É um dilema semelhante ao do marketing direto. Hoje seria muito mais fácil identificar o que não é digital e isso é muito pouco, praticamente nada.

O que mais chamou a sua atenção nos trabalhos vistos no júri?
Os países e agências que fazem os melhores trabalhos de marketing digital são os mesmos de dez anos atrás. Eles se consolidaram. Vi também a consolidação do “mobile first”. As ideias mais fortes priorizam o mobile e fazem com que os consumidores sejam mais importantes do que as marcas. A função do criativo é impactar o papel das marcas e, neste contexto, eu diria que vivemos o melhor de todos os tempos. É o melhor tempo de todos pois é possível fazer tudo. Nunca houve tantas oportunidades. Precisamos desenvolver um trabalho com maior colaboração com as grandes plataformas. Temos de trabalhar mais próximo dos Googles e Facebooks. É um trabalho que precisa ser 100% colaborativo, caso contrário, teremos ideias em silos e isto vai representar fracasso atrás de fracasso.