Qual a diferença entre o teto da Capela Cistina e um quadro do Pollock?

Qual a diferença entre a trilha do Dunkirk e o Pássaro de Fogo, do Stravinsky?

Qual a diferença entre um show do The Who e um da Madonna?

O processo.

Eu acho que em todos os casos estamos falando de arte, certo?

E arte de alto nível.

Mas, no meu entendimento, existe uma diferença – qual foi o tipo de piração: a ex, a ins ou a trans?

O Michelangelo recebeu uma encomenda: eu quero um afresco bem bonito no teto da capela que eu fiz.

E segue-se o questionário:

– Tem prazo?

– O quanto antes.

– Tem briefing?

– Capela, né…, Deus, Fé, Punição, Culpa, Céu e Anjos.

– Pode ter nu?

– Nuuuuu nu não, né! Uns anjinhos, pauzinho, peitinho…

– Quem aprova?

– Eu, depois o cardeal. E, se passar, o papa.

– Ele entende WIP?

– Não. Faz aí e mostra pronto.

– Tem grana?

– Então,… a igreja está passando uma fase difícil. Você sabe o tamanho do rombo para fazer essa sede nova etc….

Todos nós conhecemos esse papo, mas não é por isso que não vamos fazer arte, a melhor que a gente consegue. Depois de uma conversa dessa o que a gente faz? Inspira. Fundo. Várias vezes. Busca todas suas técnicas e referências para responder a demanda. Ele transpirou muito tempo para estar pronto para isso. Acorda e dorme pensando na melhor maneira de fazer todos aqueles pedidos virarem arte.

– Pronto.

– …

– E aí? Gostou?

– … tá pronto?

– Acho que sim… quer dizer, sim.

– … é… tá bacana… tô preocupado com o papa. O cardeal vai gostar, ele nem enxerga direito, mas o papa não é bobo não… tem alguma opção para aquele Deus ali? Tipo um mais musculoso…
E nessa hora o que o Michelangelo faz? Inspira, e novamente vai “não dormir pensando em como resolver com arte a sua demanda. Isso é inspiração.

– Alô?

– Alô.

– Quem tá falando, é o sr. Pollock?

– Quem é?

– Desculpa sr. Pollock, eu te acordei?

– Claro caceta, são 8 e meia da manhã, porra!!

– Pois é sr. Pollock, mas é que o senhor não pagou o quarto ainda e eu tentei algumas vezes na semana passada, tá ficando muita coisa pendurada…

– Eu já disse que vou pagar, caraca.

– Mas já passou mais de um mês.

– Eu vou pagar, eu falei que vou, porra! Que saco. Me liga depois!

– Alô.

– Quem é, caralho?

– Sou eu?

– Eu quem?

– Você não reconhece minha voz?

– Sei lá, estava dormindo, caralho. Lee?

– Quem mais ia ser, Jackson? Você andou bebendo de novo?

– Não.

– Eu te conheço, você bebeu ontem?

– Só um pouco, porra!

– Eu dou o maior gás na sua carreira e você fica chapando e dormindo na rua. Porra, Jackson, assim é foda. Eu fico em casa sozinha o dia todo e depois você chega bêbado. Eu deixei a minha carreira de lado por sua causa e agora estou aqui…

Nessa hora o Pollock larga o telefone, pega uma tela e expira. Bota pra fora. Tudo. E vira arte. Ele também transpirou muito aprendendo e estudando e experimentando. Mas nessa hora ele expira e sai um monte de coisas que não tem onde guardar. 

Ele não é mais ou menos artista que o Michelangelo, mas o processo é de expiração e não de inspiração.

– Nossa, Pollock, que quadro lindo, uma obra de arte!!! Onde você se inspirou?

– Sei lá.

E aí você me pergunta: e a piração?

Piração é a mãe de todos, é tentar entender o mundo através da arte, sendo artista em cada ato, não importa a profissão. Transpirando, inspirando e expirando. Cada um na sua hora, todos os dias, não obrigatoriamente em sintonia. Ou ainda: Piração é ir junto com a Madonna ver um show do The Who, encontrar com o Pollock e ir tomar uns vinhos na casa do Michelangelo. Ouvir o Pássaro de Fogo, do Stravinsky, enquanto assiste o Dunkirk no mudo.

Tudo é arte, tudo é parte, tudo é processo.

Ed Côrtes é diretor da produtora de áudio Tentáculo