Acordou de supetão, sem sacar bem o porquê, mas entendia a sensação. Acontecia sempre pelas manhãs, antes de o sol dar as caras e naturalmente antes do alarme do celular tocar. Tinha a visão embaçada e a mente ainda torpe. Naquela hora ocupava um lugar de transição que lhe dava acesso a dois planos distintos. Funcionava mais ou menos assim, uma série de blocos imperfeitos, esburacados ou faltando cantos, aparecia aos montes, lançada da escuridão do inconsciente para a vida real. Eram ideias, conceitos, sons, imagens, tudo bem solto e vindo em um número às vezes exagerado e nunca de maneira uniforme.

Inconscientemente ele sabia que se moldasse e encaixasse direito as peças, descartasse alguns dos blocos mais feios, girasse outros e fechasse uns tantos buracos, dali poderia sair uma forma coesa, estruturada e orgânica. Às vezes honesta e aceitável, às vezes redondinha e quem sabe até brilhante.

Com a mesma rapidez em que apareciam, aqueles bloquinhos todos tendiam a se esvair, queriam voltar logo para a escuridão. Eram preciosos e orgulhosos demais para ficar à mercê
da vontade humana por muito tempo. Ele então percebe o perigo, se vira na cama e estica o braço em direção ao celular, escreve um e-mail rápido para si mesmo com palavras-chave e pequenas frases, que só fariam sentido para ele mais tarde, quando precisasse retomar aquilo tudo. A chuva de blocos cintilantes cessa e o alarme do celular toca três vezes. Ele não tem outra opção senão arrastar o corpo pesado até o banheiro e molhar a pele, os pelos e o pouco cabelo que lhe resta, para encarar o dia de frente.

O banho é longo e funciona como uma espécie de filtro de ideias, uma seleção mental de bloquinhos. Não lembra de tudo, mas do que ainda está fresco na memória, rapidamente seleciona o que vale a pena e descarta o que não faz sentido. A mente funcionando a milhão enquanto o corpo faz tudo automaticamente. Pronto, tem um caminho a seguir. Se troca, olha o celular mil vezes e finalmente senta em frente ao computador. Descobre que existem três e-mails que enviou a si mesmo naquela manhã, não apenas um, como recordava. Checa cada um deles e anota o que acha que vale no moleskine que tira da mochila. As ideias que os bloquinhos matinais trouxeram parecem concordar com algumas outras que escrevera no caderno no dia anterior. Lê tudo junto, uma, duas, três vezes, e novas ideias começam a engordar a lista. Chega então o momento da estruturação, o mais árduo do processo. Toda a liberdade que teve até ali e tudo que veio em forma de ideia original, referência “interessante” ou bloquinhos imperfeitos agora precisam fazer sentido juntos. Tem de lidar com um prazo que, para variar, é mais curto do que deveria. Abre o Keynote e joga mil imagens e alguns links, copia as palavras e os textos do Word e do caderninho, tudo já seguindo uma primeira lógica. Olha tudo e relê. Ainda falta sentido.

Levanta e vai até a cozinha, abre a geladeira e come o que está pronto. Recosta o corpo na mesa e desbloqueia o celular. WhatsApp, placar dos jogos que não viu, dois e-mails vendendo a TV de 55 polegadas que havia pesquisado na noite anterior e, enfim, Instagram. Rola a tela por cinco minutos, se enche das imagens parecidas dos perfis que segue, até que vê uma foto que chama a atenção. Tira um print da tela e manda por e-mail para si mesmo. Sobe as escadas e volta ao escritório.

Relê e revê tudo outra vez. Alguns bloquinhos que pareciam incríveis se desfazem em pó, enquanto outros bem disformes parecem ter sido lapidados. A imagem do Instagram traz uma ideia que encaixa dois bloquinhos e mais uma frase se soma às anteriores.

Começa a escrever um texto corrido, com pontuação e parágrafos. Nem tudo faz sentido, mas precisa jogar aquilo na página branca para ver o trabalho fluindo. Precisa se enganar um pouco, para depois conseguir enxugar tudo passo a passo e quem sabe ver um progresso real. Mais imagens, alguns vídeos, ouve músicas, precisa de uma trilha de base. Escreve, edita as imagens, desenha e abre um livro. Amassa, fecha mais um buraco, constrói um canto, escreve de novo. Desfaz tudo, mais uma imagem, almoça, desce as escadas, sofá, Netflix. Volta para cima, lê, janta, relê, olha o celular. Fica cansado. Cai na cama exausto e fecha os olhos, curioso pelos bloquinhos de amanhã.

Otavio Machado é diretor de cena da Paranoid