A arte da tergiversação
A tergiversação está tão disseminada, tem tamanho impacto e acontece com tanta regularidade que se pode considerar essa atitude não apenas como epidêmica, mas com uma sofisticação que chega ao nível da arte. Arte da irresponsabilidade e do mal, pode-se dizer, mas ainda assim arte – pelo requinte com o qual tudo é feito.
Ela começa na ponta da cadeia, no anunciante. Produtos longe de serem bons e competitivos, serviços deficientes, ambos vestidos com marcas chochas, são enviados para o marketing cuidar de sua venda. Ou seja, a produção foge de suas responsabilidades e deveres e empurra, no primeiro ato de tergiversação, para o pessoal de mercado estruturar uma estratégia matadora. Só que o marketing não faz direito a sua parte. O mais lógico seria devolver a bomba para a P&D, produção, logística, sistemas, o que fosse, de modo a se ter um produto/serviço melhor e mais competitivo, para recomeçar.
Sem essa opção, a alternativa seria pensar em uma estratégia excepcional, um posicionamento único ou qualquer outro aspecto do marketing capaz de “salvar” o produto/serviço e lhe dar sobrevida, pelo menos enquanto as melhorias reais não fossem providenciadas. Simplesmente baixar o preço não vale, pois isso é dar o tiro no pé da autocomoditização do que se oferece ao mercado.
É aí que o marketing lembra da publicidade e da agência, capaz de operar um milagre, de preferência digital, com a ilusão de que os custos serão baixos e os resultados, altos e rápidos. É a contribuição dele para a cadeia da tergiversação, que já tinha recebido a ajuda do financeiro e do procurement que, por não conseguirem reduzir custos nos processos e etapas anteriores, resolveram a sua parte do jeito mais fácil: cortando verbas. Um variante desse movimento em direção à agência e cada vez mais comum, infelizmente, é trocar de agência, em busca de uma mais barata, que pareça mais genial e aceite tentar o milagre de pegar um briefing sem produto, sem estratégia e sem verba para gerar uma campanha “vencedora”.
Entre aspas porque a parte da agência nesse jogo de nonsense é topar trabalhar por pouco, inventar uma mágica capaz de render bom volume de RP e, quem sabe, um prêmio, para escapar daquele cliente bichado pegando uma parte melhor da conta – ou outro mais sério – com o fru-fru-fru alcançado com a mais requintada tergiversação.
O que acontece é que nove entre dez vezes esse truque não dá certo e a agência continua tatibitatemente trabalhando para clientes semelhantes, gerando a espiral descendente de publicidade pior mais mal paga e com menor chances de dar resultados. É quase que uma meta-tergiversação. Nessa senda da desculpa esfarrapada apresentada como solução milagrosa, a agência, devidamente mancomunada com os profissionais do cliente, vai atrás de uma mídia salvadora. A primeira tentativa é convencer uma mídia mais séria e efetiva a dar um desconto excepcional ou aceitar ser sócia dos resultados.
Como isso geralmente não rola, desembarca-se nos mais variados veículos alternativos, que topam qualquer coisa e embarcam com certa alegria no trem da tergiversação. Ou então se lança mão de alguma solução digital, de preferência inovadora, na linha do conteúdo, disseminação viral, influencers ou outra bobagem.
Aí se chega ao famoso ponto de “vocês fingem que anunciam e nós fingimos que damos resultado”, do qual as mídias digitais estão cheias. A eficiência é duvidosa e a eficácia, com certeza, é mínima. Aí se começa um novo ciclo de tergiversação, que dura até a marca e a empresa perder capacidade competitiva e sair do mercado. Por sorte, se der tempo, vendendo. Ou então caminhando para um previsível fim.
Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafael.sampaio@uol.com.br)