“A China não tem pressa”

Entrevista é com o engenheiro Lawrence Chung Koo, chinês naturalizado brasileiro há 67 anos no país

Calma! Antes que os mais apressados digam que é exatamente o contrário, o título acima faz parte de uma metáfora do engenheiro Lawrence Chung Koo, chinês naturalizado brasileiro, há 67 anos no país.

Na sua visão, construída no Brasil, sobre seu país de origem, a China não caminha nem corre; marcha. Isso porque, com mais de cinco mil anos de história, o gigante oriental sabe que mais importante do que chegar logo a algum lugar é manter o ritmo e a consistência em uma velocidade estratégica, sabendo sempre aonde quer chegar.

Poderia contar um pouco a sua trajetória de vinda para o Brasil?
Nasci em Xangai, no período de transição da China nacionalista para a China comunista. Naquele momento, Taiwan ainda representava oficialmente a China na Organização das Nações Unidas (ONU). Minha família, tanto do lado do meu pai quanto da minha mãe, era da elite intelectual e empresarial. Com a Revolução Comunista, famílias como a nossa seriam perseguidas. Então, alguns membros foram enviados a Taiwan para avaliar as perspectivas de futuro. Meus pais estavam entre eles. Quando a revolução se consolidou rapidamente, ficamos em Taiwan, onde fiz o ensino primário. Depois, imigramos para o Brasil. Uma tia já havia se estabelecido aqui, em Curitiba, antes mesmo da revolução, comprando uma fazenda de café em Londrina. Isso abriu o caminho. Chegamos de navio em Santos, em 1958, e ficamos alguns meses no Paraná antes de nos fixarmos em São Paulo.

Você tem outros irmãos?
Sim, um que mora em São Paulo e outra que mora em Ilhéus, na Bahia.

Com tanta gente no Brasil interessada nos chamados doramas, parece que com sua vinda ao Brasil você vive um C-drama de sucesso há 67 anos, né?
Sim (risos). Eu conheci a minha mulher, May, aqui no Brasil, aos 11 anos de idade, ela tinha 8. Hoje tenho 77. Começamos a namorar quando ela tinha 15, o que à época era até considerado cedo. Somos casados há 53 anos. Temos quatro filhos: três meninas e um menino. E agora estamos com 14 netos. Acredito que esse é meu maior feito na vida.

E como foi a adaptação aqui no Brasil à época da sua chegada?
No começo, foi muito difícil. Eu tinha 10 anos, não falava português e precisei voltar ao início da escola, estudando com crianças de 6 anos, apesar de já ter feito o primário em Taiwan. Foi traumático: sofri bullying diariamente. Eu era alvo fácil, não entendia sequer os insultos, mas sabia que não eram coisas boas. Era alvo de zombarias. Aos poucos, aprendi a língua, comecei a ganhar confiança e a me adaptar. Qual é a primeira regra para um imigrante aqui no Brasil ou em qualquer lugar?

Qual?
Sobrevivência. E se o país não dá de cara um espaço para o imigrante ter um emprego digno – a não ser que chegue com um monte de dinheiro –, mas sendo uma pessoa mediana, tem de fazer um downgrade da sua vida e tentar sobreviver. Meu pai era engenheiro e arquiteto, embora chinês, formado em uma das melhores escolas do mundo, que é a Universidade de Tóquio, se empregou em uma empresa americana que estava estabelecida aqui, mas ele não podia ser registrado como engenheiro, nem como técnico – o diploma dele não tinha como ser validado aqui no Brasil. E ainda é assim. Ele era um empregado que fazia trabalho de engenheiro, mas ganhava um terço do que um engenheiro ganhava. Fomos para a colônia chinesa que era minúscula. Ele achava que o trabalho na empresa não iria para frente, compramos um sítio pequeno em Suzano, perto de Mogi, e fomos criar galinhas. Eu fui estudar no ginásio de Suzano, a mesma escola onde em 2019 houve aquele massacre com a morte de estudantes e outras pessoas (Escola Estadual Professor Raul Brasil). Nessa escola foi uma experiência sui generis.

Por quê?
Porque quem morava lá era o pessoal que plantava e cultivava a terra, um ambiente totalmente agrícola. Na minha sala tinha 47 alunos, sendo três brasileiros, um chinês e o resto todo era japonês. Mas a maior população era a japonesa? Não. Não sei se já deu para você perceber o que o estrangeiro entendia – “A gente só vai crescer aqui se nossa segunda geração estudar”. No Oriente, todo mundo sabe que o que vale é o conhecimento. Como é que está a Coreia, o Japão? O Vietnã hoje forma o dobro de engenheiros do Brasil. Meu pai era uma pessoa inteligentíssima, conheceu o mundo, grande fotógrafo, músico, mas de repente passou a ser da classe mais baixa da sociedade, porque não se conseguia reconhecer aqui os valores de quem vinha de fora. Então, minha trajetória é marcada por esses entrelaçamentos: nasci na China, cresci em Taiwan, me formei no Brasil e me especializei nos Estados Unidos. Essa experiência multicultural me deu uma perspectiva privilegiada sobre como o Brasil enxerga a Ásia e, principalmente, a China.

E qual era a sua percepção do Brasil naquela época?
Vou te dar uma visão semiótica. Naquela época, o Brasil era chamado de país do amanhã. O meu pai dizia: “Filho, aqui realmente é o país do amanhã, porque toda coisa que eu peço, eles me respondem, ‘Amanhã’. A gente não vai ao encontro do amanhã; a gente espera o amanhã chegar”.

E da China?
A visão que eu tenho da China foi construída no Brasil, baseada no contraste. A partir do momento que eu tentei entender o país que estava vivendo, eu comecei a entender as diferenças com a China. Hoje, faço parte de um grupo com pessoas representativas do país para pensar um Projeto Brasil, porque ninguém aqui sabe o que o Brasil quer ser “quando crescer”. Quando você não sabe o que quer ser, você não será. Os governantes têm uma visão de no máximo quatro anos. Eles têm projetos de poder, mas não projetos de país. Trocam o futuro brilhante que ainda é possível pelo que é imediato. Na verdade, se não trocarem esse modo de pensar, nunca vamos sair do lugar. Sempre seremos colônia, porque a cabeça é de colônia. A China tem um projeto de país. Isso vai muito além de políticas públicas pontuais. Trata-se de uma visão de Estado.

Lawrence Chung Koo (Divulgação)

Eles planejam o que querem ser em 100, 200 ou até 500 anos. E há uma base sólida para sustentar esse planejamento: o capital intelectual. E como isso se forma? Pela educação. Quase todos os países do Extremo Oriente – China, Japão, Coreia – têm um compromisso profundo com a educação, da primeira infância ao pós-doutorado e à pesquisa científica. Veja o caso do Japão: o país praticamente não tem recursos naturais, importa quase tudo. Ainda assim, transforma o que recebe em produtos de altíssimo valor agregado. A verdadeira matéria-prima do Japão é o japonês. No caso da China, é parecido. Quando se fala que a China é uma fábrica, o que isso significa? Que o verdadeiro motor da produção chinesa são os chineses.

Sua capacidade de planejar, se organizar e produzir...
Exatamente. A China não tem pressa. Ela não caminha, não corre; marcha. Isso porque com seus mais de cinco mil anos de história, sabe manter ritmo e consistência para chegar aonde quer. O país se planeja para décadas ou mais: seja sua infraestrutura, seja energia, segurança alimentar... É planejamento estratégico em nível nacional. Ao contrário da mentalidade brasileira, que improvisa, o chinês não faz nada sem planejar. A China tem uma visão industrial muito clara: produz para o mundo. Lá, a mão de obra é barata, mas grande parte da produção já é automatizada. Eles constroem máquinas para fabricar outras máquinas. Há até o conceito de “fábrica escura”, ou seja, fábricas completamente automatizadas, onde não há nenhum ser humano, e por isso sem necessidade de luz. A matéria-prima entra, o produto sai e todo o processo ocorre sem intervenção humana.

Mas, ainda assim, há uma imensa força de trabalho humana.
Sim, claro. Basta observar um cozinheiro chinês, a habilidade, a técnica, a precisão. Ainda há muito espaço para o talento humano, especialmente em áreas artísticas e culturais. Mas a lógica é: se algo pode ser feito por uma máquina, será automatizado. E se exige um toque humano, o profissional será altamente especializado nisso.

O que o Brasil pode aprender com isso?
O Brasil precisa de visão estratégica e execução consistente, algo que a China desenvolveu ao longo de milênios. Nós começamos projetos, mas não conseguimos terminá-los. Essa é a diferença fundamental. Estamos falando de China, mas precisamos refletir sobre nós mesmos. Não temos uma identidade de Brasil. A Bahia tem uma identidade muito forte, o Rio Grande do Sul tem uma identidade muito forte. Mas qual é a nossa identidade como Brasil? Não somos capazes de aceitar totalmente o diferente de cada um de nós. Estive em ambientes muito distintos e percebi diferenças políticas e culturais profundas. Essa diversidade nos impede de chegar a um entendimento coletivo. Quando conseguimos criar uma imagem do Brasil no mundo, essas imagens se autorrealizam. Elas não apenas convencem os brasileiros, mas também outros países, que começam a nos considerar dessa forma e reforçam essa percepção. Assim, construímos objetivos e estratégias a partir dessa imagem. A China tem essa identidade formada ao longo de sua história milenar. Os Estados Unidos têm isso. Na Europa é diferente, é algo fragmentado. Cada país tem seu orgulho. Se não resolvermos essas diferenças, o Brasil não vai evoluir. Identidade e mindset são fundamentais, e ambos exigem tempo, experiência e educação.

Ainda falando sobre planejamento, o que influenciou o seu interesse pela visão estratégica das coisas?
É difícil dizer. Meu pai era engenheiro, eu sou engenheiro, e a engenharia ensina a planejar. O pensamento chinês também valoriza o planejamento rigoroso. Como já mencionei, o chinês não faz nada sem planejar. E para isso é preciso ter conhecimento. É a clareza que orienta todo o planejamento estratégico e a visão de longo prazo. Em última análise, o planejamento é resultado da filosofia. Os filósofos antigos foram os responsáveis por estruturar o pensamento e a clareza que hoje valorizamos. Então, fui influenciado pela filosofia e, claro, pela minha experiência pessoal.

E por falar em influências, como você se sente quando volta à China?
Estive recentemente, inclusive, em uma viagem do Brasil à China para participar de um evento específico de semiótica. Uma das coisas que fiz foi visitar a casa onde nasci. Foi interessante rever meus primos. Quando estou lá, me sinto bastante chinês. E me senti ainda mais na ocasião do evento, porque o grupo que acompanhava não falava chinês. Senti-me mais chinês do que nunca. Quando vou para os Estados Unidos, também me sinto mais chinês – não porque eu queira parecer mais chinês, mas porque os norte-americanos não falam chinês e quando me olham (veem os olhos asiáticos), todos para eles são chineses.

É um preconceito explícito assim?
Depende do lugar. Em São Francisco ou Nova York, grandes metrópoles, não se sente tanto, mas em cidades menores dos Estados Unidos, os locais percebem quando você é estrangeiro. Lá há uma sensibilidade maior para estrangeiros do que no Brasil. Aqui, sou muito mais acolhido do que nos Estados Unidos. Apesar de ser chinês, consegui me tornar brasileiro e ser aceito.

E com essa sua visão global e sua percepção do tanto que ainda precisamos aprender para nos ajustarmos como nação e até mesmo como povos do mundo, o que o motiva, o que o faz estudar tanto, a discutir projetos para o Brasil...?
Vou lhe contar uma historinha que nos era narrada na escola, quando eu era criança lá na China. O professor nos dizia que um vovozinho levou seu netinho para plantar uma tamareira. Eles foram juntos ao quintal, pegaram a semente, colocaram na terra, adubaram, regaram e, então, o netinho encantado perguntou: “Vovô, quanto tempo leva para essa tamareira dar frutos?”. O vovozinho olhou para ele, sorriu e respondeu: “Ahh... muitos e muitos anos!”, no que o netinho surpreso disse: “Mas, vovô, você não vai ver os frutos!”. E, então, o vovozinho respondeu: “Mas você vai!”.