A força da ancestralidade

O cineasta Tiago Minamisawa transformou a busca por autoconhecimento em potência criativa

Cineasta e diretor de projetos premiados, como a coletânea de livros infantis ‘Amar’ e o curta ‘Sangro’, Tiago Minamisawa passou a demonstrar em seu trabalho a força da sua ancestralidade.

Descendente de japoneses por parte de pai, ele transformou a busca por autoconhecimento em potência criativa.

Em produções como ‘Kabuki’, ele traz uma questão social fortemente brasileira, a morte de pessoas trans, mas se inspirou na cultura oriental para potencializar a sua narrativa, misturando elementos ocidentais em um encontro estético e político entre dois mundos que, na verdade, o definem.

Qual a influência da descendência asiática na sua vida?
Minha avó paterna é japonesa, mas meu pai nasceu no Brasil e minha mãe é mineira. Quando criança, ele entendia japonês, mas não falava nem escrevia. Eu e meus irmãos tivemos pouco contato com a cultura japonesa em casa. Foi na escola que comecei a descobrir minha identidade asiática. Eu era chamado de ‘japa’, mas não me conectava com essa imagem. Eu me comparava muito com o padrão ocidental, o que tornava muito difícil aceitar meu corpo e minha estética tão diferentes do resto da sala. Em casa, nos churrascos familiares, existia pontos de conexão: o sushi, a presença da minha avó, mas tinha também a parte árabe, quibe à mesa... Era uma festa multicultural.

E quando se intensificou esse contato?
Quando eu estava na faculdade, que aliás foi bem engraçado. Thiago Amaral Minami, que hoje é um amigo, achou meu nome parecido com o dele e veio falar comigo. Ele era de São Paulo, e eu estudava em São Carlos (SP). Ele tinha a cultura japonesa muito presente na vida, já tinha sido ‘dekassegui’ trabalhando em empresas no Japão. Ele estava estudando para fazer o mestrado no Japão, depois fez doutorado e hoje mora em Tokio, tem uma relação muito forte com o Japão. E foi ele que me apresentou aos amigos descendentes de japoneses. Foi aí que eu passei a conviver com a cultura japonesa mais intensamente por meio desses amigos. A gente saia, ia aos lugares e parecia que tinha uma minicolônia japonesa nas baladas.

Foi nesse período que você foi ao Japão?
Fui ao Japão em 2010, aos 25 anos. Foi muito interessante. Parecia aqueles vídeos de animaizinhos sendo reinseridos no habitat natural. Muitas coisas que eu não entendia em mim passaram a fazer sentido lá. Foi uma viagem que me reconectou com muita coisa. Eu tinha muito problema de imagem. Mas não era mais como se eu fosse o patinho feio; eu apenas não tinha encontrado o meu lugar ainda.

E aí veio o cinema...
Estudei cinema, bacharelado em imagem e som. Depois fui para São Paulo, trabalhei em produtoras por mais de dez anos. Trabalhei para O2 Filmes, Bossa Nova Filmes e Ocean Filmes, entre outras, sempre no audiovisual e em publicidade. Mas chegou um momento que tive o desejo de criar algo meu. E a minha trajetória pessoal e profissional está totalmente entrelaçada com esse processo de autodescoberta e reconexão com a minha ancestralidade.

E quando se deu seu primeiro trabalho?
Em 2014, com uma coletânea de livros infantis, a AMAR, com temática LGBT, que fiz com o Bruno H. Castro e vários ilustradores. A partir dali, entendi que precisava parar de produzir só para os outros e realizar minhas ideias.

Aí veio o filme ‘Sangro’. Como se inspirou?
Após assistir a um documentário sobre Kurt Cobain, que falava sobre seu processo criativo, pensei: ‘Meu sonho sempre foi escrever algo assim, por que não estou fazendo isso?’. E aí, em 2016, 2017 comecei a me dedicar de verdade à escrita cinematográfica. Decidi escrever sobre uma pessoa que convive com o HIV. Era uma história curta, mas potente. A inspiração surgiu quando eu estava começando um namoro, com quem hoje é meu marido. Foi algo muito forte. Ele me disse: ‘Demorei tanto tempo para sair do armário, agora parece que estou voltando, por causa do HIV.’ Aquilo me tocou profundamente. Respondi: ‘Vamos fazer um filme, você vai contar isso ao mundo e vamos mudar a forma como as pessoas olham para isso’.

Tiago Minamisawa

Na época, ainda havia muito preconceito, né?
Sim, e ainda há. Muitas pessoas ainda associam HIV diretamente à aids, como se fosse a mesma coisa. Muita gente ainda vive com uma visão estigmatizada dos anos de 1990 e das imagens da mídia sensacionalista com o Cazuza, o Fred Mercury. Mas o que precisa, na verdade, é falar sobre o que é viver com HIV hoje. Foi um aprendizado meu também, vivendo com o meu marido, entendendo o tratamento, os exames, a medicação, quando o vírus começa a ficar indetectável...

Aí estourou...
Foi um ‘boom’. O filme, que escrevi e dirigi em parceria com Bruno H. Castro, foi para o mundo inteiro, percorreu mais de 70 festivais, ganhou todos os prêmios mais importantes no Brasil, teve muita repercussão. Foi minha estreia na direção. Foi muito importante eu ver que tinha capacidade de produzir e o que eu poderia gerar. Entendi que precisava continuar fazendo cinema.

E aí começa a haver mais influência direta da cultura oriental no seu trabalho?
Na verdade, começou antes, em 2015. Durante a produção da coletânea, fiz uma oficina artística para pessoas trans. Foi quando eu descobri a vivência que elas passavam, o quanto sofriam preconceitos, eram violentadas. Descobri o Brasil como o país que mais mata pessoas trans no mundo. Pensei: ‘Preciso fazer alguma coisa, preciso usar essa ferramenta que tenho para algo maior’. Um dia, vendo uma peça no Sesc, uma apresentação da cantora trans Anohni com o dançarino japonês Yoshito Ohno, filho do mestre do teatro butô Kazuo Ohno. Yoshito Ohno dançava com um boneco representando o pai, enquanto Anohni cantava. Aquilo me remeteu à ideia do roteiro, um ‘boneco” buscando a sua identidade trans, inspirado no teatro japonês Bunraku (teatro de bonecos do Japão). E assim nasceu a ideia de ‘Kabuki’.

Ou seja, surgiu antes do ‘Sangro’?
Sim. A ideia do ‘Kabuki’ surgiu antes até do ‘Sangro’. Tentei inscrevê-lo em editais, mas era um filme caro, complexo, com muitas demandas técnicas e orçamentárias. Não era possível na época. Depois que o ‘Sangro’ circulou e ganhou visibilidade, retomei o projeto do ‘Kabuki’. Em 2019, finalmente, conseguimos o primeiro edital aprovado e iniciamos a produção. Mas o roteiro, o conceito visual e toda a preparação vinham sendo trabalhados desde antes.

Nesse processo criativo, do planejamento a execução, você percebe alguma relação com a influência da sua ancestralidade japonesa?
Com certeza. Acho que herdei muito isso do meu pai, que também era engenheiro civil. Então cresci com essa lógica de planejamento e construção por etapas de uma obra. Mesmo sem uma criação imersa na cultura japonesa, esse modo de pensar, organizar, estruturar, concluir projetos, ter um olhar do todo, inclusive do que vem depois, uma ética muito forte no trabalho, tudo isso me acompanha até hoje. Acho que tem muito da cultura oriental nisso, mas também do ambiente em que cresci. É claro que existe uma estigmatização de que o japonês é assim. Não são todos que são assim. Também somos fruto do nosso meio. Não existe uma genética que nos transforme desse jeito. A gente precisa de educação, de todo um ambiente que beneficie todo esse processo. No meu caso, sempre foi algo que existiu na minha casa.

E como você lida com isso na sua criação, no seu trabalho?
Quando comecei o ‘Kabuki’, fiz questão de montar uma equipe também com pessoas descendentes de japoneses, como Stephanie Saito, Fabiana Fukui, Larissa Nakashima. O Guilherme Petreca, que é o diretor de arte e fez os desenhos, não é descendente, mas é completamente apaixonado pela cultura japonesa, é mais “japonês” do que eu. Eu percebo uma identificação muito sutil na forma de se comunicar com eles. Só quem já recebeu um olhar de uma tia japonesa sabe do que eu estou falando. Ela não precisa de muitas palavras para dizer o que quer. É algo quase que intuitivo. Não é um desmerecimento a quem não é descendente, porque cada pessoa é diferente, mas eu sinto uma forma de comunicação, de lidar que tem uma identificação forte.

E qual a sua percepção sobre essa influência japonesa hoje?
A influência japonesa sempre teve seu nicho, especialmente em São Paulo nos mangás, na culinária, nos eventos da comunidade. Mas hoje vejo mais impacto da influência da Coreia do Sul, que investiu pesadamente na indústria cultural. Se eu estivesse na escola hoje, minha autoimagem seria outra, porque há uma exaltação – até fetichização – do corpo asiático. Mas essa imagem vem mais da Coreia do que do Japão, ainda que baseada no modelo pop norte-americano.

Você tem estudado essas influências, não é?
Nos estudos que venho fazendo para o meu próximo longa, que tem referências ainda mais japonesas, percebi como o Japão do pós-guerra viveu duas projeções culturais fortes: a exaltação de um passado tradicional – o kabuki, as gueixas, os samurais etc. – e a imagem de um país moderno, tecnológico e alinhado ao Ocidente. Após as bombas atômicas e a ocupação americana, houve uma tentativa de apagar o imaginário negativo associado à aliança com o nazismo e reconstruir
uma nova narrativa: a de um Japão pacífico, limpo, organizado e conectado às tradições. Até hoje, muitos desconhecem ou acham difícil conceber o papel do Japão na Segunda Guerra.

Estando em muitos festivais de cinema, onde há também muito jovens, você percebe esse maior interesse pela cultura asiática?
Quando vi que a ida dos membros do BTS (grupo musical sul coreano) impactou o PIB da Coreia, ficou claro o poder da cultura oriental hoje. Algo interessante nos mangás, mesmo sem ser especialista, é a diferença entre a jornada do herói ocidental e a do oriental. No Ocidente, influenciado pelos EUA, a narrativa é centrada no feito individual – alguém que supera tudo por mérito próprio, como em ‘Harry Potter’. Já no Oriente, a transformação do herói tem menos a ver com uma narrativa linear individual e mais como um ser que vai aprendendo coletivamente e se transformando dentro de um grupo social. Em ‘A viagem de Chihiro’, por exemplo, não se trata de ser a maior ou melhor, mas de amadurecer com os outros, em grupo. Talvez isso explique por que tantos jovens se identificam com os animes e mangás: eles criam um espaço de pertencimento e identidade compartilhada.

Na produção de ‘Kabuki’ há toda uma inspiração japonesa evidente, mas também há o seu olhar de brasileiro. Como você enxerga a junção das duas culturas nesse processo criativo?
Esse processo foi uma libertação pela qual precisei passar. Quando se quer mexer com uma linguagem tão enraizada e tradicional como o teatro japonês, há sempre o risco de ser ofensivo ou equivocado. Então, para não travar o meu processo criativo, procurei não entrar nesse lugar. Entendi que tudo o que eu fizer sobre o Japão será sempre sobre o imaginário que tenho como descendente e como alguém que não nasceu nem foi criado lá. Eu nunca vou fazer uma obra como um japonês faria. Assumir esse olhar estrangeiro, essa inspiração por um Japão imaginado, foi o primeiro passo. No caso de ‘Kabuki’, uso o imagético japonês, mas já no primeiro plano trago uma referência a Narciso, que é totalmente ocidental, assim como a gueixa, que remete à ‘Pietà’, de Michelangelo. São imagens que eu quis trazer e dialogam com questões de autoimagem, de ser esse oriental no Brasil. E, ao mesmo tempo, é sobre o Brasil, porque o tema central é uma questão brasileira: a morte de pessoas trans. Um país onde pessoas transexuais são assassinadas todos os dias, onde a violência atravessa a existência delas. Essa mistura de referências orientais, ocidentais, religiosas, populares não é só estética, é política. Ela nasce de mim, da minha vivência. E eu queria, narrativamente, fazer o Oriente se encontrar com o Ocidente, porque, no fundo, é isso que eu sou.