A minha finca
No dia do aniversário de um dos mais importantes clientes de nossa agência, tivemos uma reunião especial para decidir qual o presente que poderíamos oferecer e fosse marcante de verdade. Não poderia ser apenas ostensivo, tipo relógio de milhares de dólares ou uma gravata desenhada pessoalmente por Emile Hermés, pois o cliente era muito rico e não seria apenas a grana que o comoveria. O que importava era o significado. Tivemos então a ideia de encontrar um vinho exclusivo e muito raro e acondicionar as garrafas numa caixa de madeira com o logotipo da agência e o nome do cliente.
Os mais respeitados importadores foram acionados para nos encontrar um vinho assim, que se distinguisse entre os rótulos mais aclamados do mundo inteiro. Foi um desses marchands que encontrou em seu estoque algumas garrafas quase centenárias de um produtor francês, de nome histórico. Vinho mis en bouteille pessoalmente por um conde nome de rua em Paris. Coisa finíssima. Puta luxo.
Mandamos um vice-presidente buscar as garrafas, devidamente transportadas no colo, protegidas da luz solar e acondicionadas de forma a não perder a poeira acumulada, detalhe dos detalhes, mas importante para o efeito que queríamos. Quando o portador chegou, a agência inteira parou para ver a raridade. Para se ter uma ideia, os rótulos eram escritos à mão pelo engarrafador. Pedro Henrique Garcia foi o diretor de arte encarregado de desenhar a decoração da caixa de madeira. E foi na sala dele, Pedro (naquele tempo – velhos tempos! – diretor de arte tinha sala própria), que os vinhos passaram a noite, repousando nos mesmos panos em que viajaram, colocados num armário.
Durante a madrugada a velha faxineira encontrou aquela porcaria poeirenta e concluiu que o Pedro, solteiro na época, era um tremendo relaxado, guardando garrafas sujas envoltas em velhas cuecas. E, cheia de amor, lavou tudo, com muita água e sabão, colocando para secar na janela, aproveitando o sol. E foi embora, orgulhosa por ter ajudado a arrumar a vida daquele escroto. Dez horas da manhã, diante de garrafas reluzentes e limpíssimas, com rótulos borrados, Pedro pensou seriamente em se suicidar. Mas, após o choque, justificou sua fama de criativo. Retocou os rótulos piorando ainda mais o seu estado e como toque final sacudiu em cima das garrafas o filtro do ar-condicionado, deitando sobre tudo alguns meses de poeira, ácaros e restos de carpete acumulados no aparelho.
As garrafas foram entregues solenemente e solenemente degustadas, inclusive com acalorados comentários sobre o detalhe da preservação das garrafas tal como foram encontradas na cave. E aí vem o pior.
Depois do sucesso desse presente, resolvemos replicar em outras ocasiões, diminuindo, é claro, o valor dos vinhos que ganhavam rótulos totalmente fantasia e muita poeira. Não chegamos a engarrafar zurrapas, mas aproveitamos ofertas de supermercados com chilenos razoáveis, argentinos mais ou menos e italianos de mesa. Por preguiça ou por vício, o tempo ia passando, a imaginação acabando e os rótulos passaram a ser feitos em série. Mais um pouco e criamos uma finca: “Los Píncaros Nevados”, que virou mais ou menos nossa marca registrada. Sempre para presentes, registre-se. Nunca vendemos uma só garrafa.
Para aplacar a consciência, o rótulo dava uma leve dica da bebida: “Vino producido a partir de uvas vinículas de cepas nobres cosechadas de vides originales e elaboradas por processos muy antigos em regiones tradicionales”. Isso não quer dizer porra nenhuma, mas impressiona, ainda mais com as advertências de que se tratava de “Produto Exclusivo”, além de que o rótulo era de “Partida Particular bajo Supervision de interéspersonal”, o que também não tem qualquer significado.
Só percebemos que a brincadeira tinha ido longe demais quando a filial de Brasília encomendou uma caixa para presentear uma altíssima autoridade sob a qual se inseria o órgão encarregado de defraudações. Fechamos a “fábrica” nesse dia. Tínhamos ido longe demais e perdido a vergonha. E aprendemos duas coisas: a primeira, que na área da sacanagem é fundamental saber a hora de parar. E a segunda é que é exatamente pelo sentimento de impunidade que o tratador do tigre leva a patada mortal, o equilibrista cai do arame e o corrupto é pego cheio de malas. E, para comemorar a descoberta, bebemos o estoque de presentes. Aliás, o vinho era bom. O que estragava era a mentira. Como sempre.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)