A periferia no comando da economia

 

Criado em 2001, o Data Popular é referência em pesquisas e estratégias voltadas para as classes C, D e E. O instituto foi um dos pioneiros a mostrar ao país que “existia vida” na parte de baixo da pirâmide social e que rapidamente esse público se transformaria no maior mercado consumidor do Brasil. Nesta entrevista, seu fundador, Renato Meirelles, diz que as empresas já passaram da fase de conhecimento das classes emergentes e que agora devem se preocupar com as estratégias. Também mostra o quanto os jovens da periferia são formadores de opinião – e não apenas de sua classe. Um exemplo é o funk de Anitta, Naldo e MC Guimê, hoje invadindo os Jardins.

Quanto representa a classe C no Brasil atualmente?
Trata-se de 54% da população, movimentando R$ 1,17 trilhão anual. Se fosse um país independente, estaria no G20 da economia mundial. Mais precisamente na 18ª posição.

A classe C foi pauta de diversas reportagens e eventos nos últimos anos. Esse boom parece que acabou. O que explica isso?
É que, por ser o principal mercado consumidor do país hoje, a classe C não é mais uma novidade para a maior parte das empresas, que hoje estão mais preocupadas em desenvolver estratégias para esse público do que propriamente entendê-los. Aqui mesmo, no Data Popular, nossa parte de estratégia, que hoje representa cerca de 40% de nossos negócios, cresce mais que a parte de pesquisa, que está no patamar de 60%. Por outro lado, também temos visto a expansão de duas novas frentes: as novas classes A e B, formada por emergentes da C; e a base da pirâmide, que, para entender melhor, criamos, no final do ano passado, o Data Favela, em parceria com a Cufa (Central Única das Favelas), do Celso Athayde, no Rio de Janeiro, em um evento no Copacabana Palace. É um mercado de 11,7 milhões de pessoas, que juntas formariam o quinto maior Estado do país.

Não soa contraditório o lançamento do Data Favela no Copacabana Palace, considerado um símbolo da elite brasileira?
Não, era justamente o que queríamos. Mostrar ao “asfalto” a pluralidade da favela. O quanto eles consomem, mostrar como são otimistas, que são empreendedores mas, por estarem afastados do resto da população, ainda têm uma demanda de consumo muito maior do que as outras classes. Além disso, foi a primeira vez que se reuniu a iniciativa privada, o terceiro setor e o poder público em uma discussão como essa.

Mas as empresas também já estão de olho na base da pirâmide ou a classe C ainda é o limite de suas estratégias?
Sim, estão. Desde a Favela Vai Voando (parceria com o site Vai Voando), que disponibiliza pontos de vendas de passagens aéreas a preços mais acessíveis, e que faz com que muita gente viaje de avião pela primeira vez por meio desse canal, até uma grande rede como a C&A, com o projeto Poderosas do Brasil (da agência DM9DDB), em que Gisele Bündchen visitou mulheres de diversas regiões do país e serviu como curadora de moda para criar uma coleção democrática. A própria Gisele, como garota-propaganda da marca Pantene, esteve por trás do Top Cufa Brasil, primeiro concurso de beleza com candidatas somente das favelas, e cuja final foi no Caldeirão do Huck, na TV Globo.

Você disse que o Data Popular tem crescido muito na parte de estratégia. Que tipo de ações estão sendo feitas?
Temos nos especializado muito na temática da mulher, com parcerias significativas com o Instituto Avon, onde recentemente apresentamos uma pesquisa sobre a percepção dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher, e o portal Tempo de Mulher, da jornalista Ana Paula Padrão. E essas pesquisas mostram que a classe C só existe graças à mulher, porque elas entraram no mercado de trabalho e fizeram com que suas famílias subissem da classe D para a C. O problema é que ela foi para o mercado de trabalho e o homem não foi para a cozinha. Mesmo assim, é ela que passa a ser cada vez mais a dona efetiva do lar. Pois ela já controlava as finanças do marido. Agora, com o dinheiro dela, ninguém a segura. Outra constatação, e que é importante para as estratégias dos anunciantes, é saber que além da mulher estar no protagonismo desta classe, o jovem (de 16 a 24 anos), de forma geral, também está. Ele é o formador de opinião de no mínimo 78% da população, que é a soma das três classes mais baixas da pirâmide. Porém, os 22% da classe AB também têm transitado pela cultura da periferia. O funk invadindo os Jardins (região nobre de São Paulo) é um exemplo. Outro: a cada R$ 100 que o pai das classes A e B colocam em casa, seus filhos contribuem com R$ 57. Essa proporção sobe para 100/97 nas classes C, D e E. Só que existem diferenças claras entre os jovens de diferentes classes mesmo com aspirações de consumo parecidas.

Quais?
Os exemplos das marcas usadas nos recentes rolezinhos são claros. A camisa polo do jovem da periferia tem um cavalo enorme. Da classe alta, é discreta. A Lacoste produz camisa lisa para o jovem das classes A e B, e estampada para os demais jovens. O maior erro de grande parte das empresas é achar que os jovens de classes mais baixas querem ser igual aos ricos. Eles podem querer ser ricos, mas não iguais. Pois eles acham que as classes mais altas rasgam dinheiro, que não possuem valores iguais aos deles – como apego à família e uma grande quantidade de amigos.

No caso de rasgar dinheiro, o crescimento da classe C também não está ligado a essa expressão? Pois foi um povo que emergiu e consumiu de forma voraz em pouco tempo. Ele não acabou comprando mais do que necessitava?
Não. A inadimplência da classe C está no mesmo patamar de todas as outras classes sociais, inclusive A e B. Vamos lembrar que muito antes deles emergirem, catavam latinhas para reciclar e colocar uma renda extra na família. Sempre contaram centavos para fechar o orçamento. E aprenderam com seus erros financeiros no primeiro momento em que começaram a ganhar mais dinheiro. Eles se interessam por programas de educação financeira, como o do Febraban (Federação Brasileira de Bancos), o Uso Consciente do Crédito. Mas conhecem suas necessidades. Fizemos uma pesquisa em uma favela do Rio de Janeiro onde abordei uma mulher que disse estar feliz por comprar sua primeira máquina de lavar. E que comprou o eletrodoméstico fazendo um carnê e pagando prestações. Perguntei se ela havia calculado os juros que pagaria e a resposta foi sim. Então insisti e disse se não era melhor poupar e comprar a máquina mais tarde, à vista, evitando os juros. A resposta foi a necessidade do conforto, já que é duro lavar roupa à mão, no tanque. O mesmo vale para o pai que compra um computador para o filho, para ajudar em seus estudos. Ou o celular com quatro chips, sendo que no sobrenome de seus contatos vai sempre um Oi, TIM, Vivo ou Claro, para que ele escolha a tarifa mais barata.

Como você mesmo afirmou, os jovens das classes mais altas têm experimentado a cultura da periferia. Porém, ainda temos exemplos de preconceito no dia a dia. Caso da frase “aeroporto virou rodoviária”…
Realmente essa é uma frase que lamentavelmente ouvimos por aí. Mas as classes A e B têm passado por uma transformação. Aqueles que são da primeira geração, que emergiram por esforço próprio, não são assim. Porém, temos alguns exemplos de preconceito vindo das pessoas de famílias mais tradicionais, que parecem não aceitar as mudanças. É só ver que 50% desse público diz frequentar apenas locais onde estão pessoas de seu mesmo nível social. Mas não adianta querer remar contra a maré. A classe C veio para ficar.

Que ensinamentos as classes mais baixas podem dar ao topo da pirâmide?
Valor ao dinheiro, solidariedade entre amigos, aceitar o diferente e ter uma relação com a cultura de forma mais plural.

E como o mercado publicitário deve se portar diante de uma classe consolidada e que já é conhecida por ele?
Eu acho que um dos grandes desafios de agências e anunciantes é ter em seus quadros profissionais com origem nas classes C, D e E. Pois é mais fácil ensinar os fundamentos do Kotler a eles [Philip Kotler, considerado a maior autoridade do marketing mundial] do que fazer o jovem que cursou MBA de marketing na Universidade de Buffalo (Nova York) pensar igual ao jovem da periferia. Só que aqui os RHs das empresas já cortam candidatos pela faculdade que ele fez. Um grande erro.

Você acha que a mídia brasileira já tem dado mais atenção a esse público, falando em conteúdo criado para eles?
Sim. A novela “Avenida Brasil”, na Globo, foi um exemplo. Na própria emissora vemos hoje o “Esquenta!”, com a Regina Casé. Temos um significativo aumento do jornalismo de serviço, dos jornais gratuitos distribuídos nas ruas. A própria TV por assinatura tem aumentado o número de filmes dublados, o que é também um sinal da entrada da classe C nesse meio. E cada vez menos se ouve a palavra “audiência qualificada”, para distinguir as classes A e B. É só audiência. Sem contar a capa da Veja, recentemente, com o MC Guimê (o grande nome do chamado “funk ostentação” da atualidade), e que contou com um estudo do Data Popular.

Quais ações o Data Popular prevê para 2014?
Vamos lançar nesta terça (18), em parceria com o Serasa Experian, a ferramenta “Faces da Classe Média Brasileira”, o maior trabalho de segmentação já feito sobre esse público. Separamos a classe C em quatro grandes perfis, com características próprias. E iremos oferecer a agências e anunciantes, por meio do cruzamento de dados sociodemográficos e informações comportamentais, onde está a pessoa que quer no momento comprar uma geladeira, quem é aquele que quer fazer uma viagem de avião, o que eles pensam, como abordá-los. E por aí vai. Também estamos lançando uma parceria com a boo-box (empresa de social media) visando impactar as empresas que não sabem como falar com os jovens da periferia a não ser fazendo comunicação de massa. Quem também está envolvido nesse projeto é o produtor Renato Barreiros, do documentário “Funk Ostentação”, que nos ajudou a identificar quem são os jovens ascendentes da periferia que podem servir ao mercado como divulgadores de marcas e produtos.

Por fim, como vocês analisaram os rolezinhos?
Estudamos muito. O que aconteceu foi uma manifestação do mundo físico de celebridades que só existiam na periferia. Quando eu falei na questão anterior sobre jovens que podem servir de divulgadores das marcas, entre eles estão os motivadores dos rolezinhos. São pessoas extremamente populares na periferia, que possuem 40 mil, 50 mil seguidores. E que marcaram encontro com seus fãs justamente nos shoppings, por ser o lugar onde estão as lojas que consomem. E são ambientes que sempre se posicionaram não só como centro de compras, mas também de lazer e entretenimento. Porém, muitos jovens aglomerados podem causar problemas. E isso não está restrito à periferia, mas também compete aos estudantes da FEA (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP) que entram bêbados e pintados no Shopping Eldorado, em São Paulo, a torcedores que guardam seus carros em shoppings perto de estádios de futebol e descem a rampa do local entoando palavras de ordem. O que sei é que os jovens da classe C consomem R$ 129 bilhões por ano. Mais do que as outras quatro classes juntas. É uma força que não pode ser ignorada.