A sabedoria como regra de atuação
Coluna conversou, nesta semana, com André Bueno, historiador, sinólogo e professor da UERJ
O historiador, sinólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) André Bueno conta a seguir que o pensador chinês Kongzi – Confúcio na cultura ocidental – dizia que o sábio não maltrata nem as pessoas nem as palavras.
Para ele, a linguagem é o centro da preservação cultural e da comunicação social.
Entender o seu pensamento e as formas de comunicação como base para o respeito e a harmonia entre as pessoas e a natureza pode lembrar a profissionais de propaganda e marketing, que têm a linguagem como ferramenta de trabalho, da importância de sua responsabilidade social.
Poderia contextualizar o surgimento de Confúcio como personagem histórico e o início de sua influência na Ásia?
Kongzi (551-479 aec, latinizado como ‘Confúcio’ pelos missionários cristãos do século 16) pode ser considerado, sem sombra de dúvidas, um dos personagens mais importantes da cultura chinesa, e um dos principais articuladores de sua preservação. Ele viveu em um período conturbado da história da China, marcado por conflitos, disputas e uma escalada de violência e crise moral sem precedentes, que terminariam por descambar numa guerra civil aberta. Pensando em como poderia evitar essa crise social e cultural, Confúcio elaborou um projeto educacional e político capaz de fornecer aos seres humanos instrumentos éticos, críticos e intelectuais que lhes permitiram uma vida mais autônoma, autêntica e interessada no bem-estar comunitário. Seu programa se baseava no estudo da história como genealogia da sociedade, no autocultivo como aperfeiçoamento moral e na expressão intelectual pautada nas artes – tudo isso, visando a formar pessoas melhores e capazes de atuar na vida pública, fosse como administradores, professores ou simplesmente pessoas boas. Foi nesse sentido que a Rujia (ou ‘escola dos acadêmicos’, erroneamente chamada de Confucionismo pelos mesmos missionários do século 16) se tornou um pilar importante no desenvolvimento da educação como o centro da vida cultural chinesa. Se a civilização era mantida pelo ensino da história, dos rituais e da escrita, era necessário educar as pessoas para alcançar essa ordem; se a vida social estivesse harmônica, o governo também o estaria; e assim, uma ordem cósmica e ecológica natural se instauraria entre a humanidade e a natureza. Confúcio, porém, defendia que a educação deveria, doravante, ser sempre implementada, de modo a preparar as pessoas para manter esse equilíbrio harmônico entre si e com a natureza. Essa visão acabou se tornando o centro de uma tradição cultural chinesa, construindo a estrutura fundamental sobre a qual ela seria preservada e desenvolvida.
Há quem veja o confucionismo – e agora melhor dizendo, a Rujia – como uma religião. Qual era a visão de Confúcio – também melhor dizendo, Kongzi – sobre as práticas religiosas e sobre decisões baseadas no divino?
Confúcio podia ser religioso, mas nunca criou uma religião. Ele acreditava em espíritos e divindades, mas, como ele mesmo disse uma vez, ‘os mantinha afastados das coisas públicas’. Isso é crucial: todo o projeto de Confúcio era ético e político, nunca dependeu de qualquer divindade ou influência teológica. Definitivamente, ele privilegiou a sabedoria, e não a fé, como regra de atuação no mundo. Confúcio, inclusive, nunca virou um santo, como dizem: ninguém reza pra ele, ele nunca salvou ninguém ou apareceu em sonho dando avisos. A escola acadêmica, como o nome diz, é uma escola de formação de intelectuais. Confúcio está mais próximo de Aristóteles ou Piaget do que Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino. Novamente, voltamos ao século 16: para os missionários cristãos, não havia uma distinção clara entre filosofia e religião, assim como eles não concebiam a durabilidade de uma escola de pensamento sem a atuação de uma força divina. Por isso, eles acabaram classificando os acadêmicos como ‘confucionistas’, ou ‘seguidores de Confúcio’, numa perspectiva religiosa que era desconhecida pelos próprios chineses.
De que forma ele conquistou relevância em toda a Ásia e ultrapassou fronteiras geográficas, tornando-se uma referência mundial há mais de dois mil anos?
A visão de cultura de Confúcio se transformou na base da ideia de civilização chinesa apregoada pelas dinastias chinesas, principalmente a partir da dinastia Han (206 aec – 221 ec). Podemos dizer que as ideias de Confúcio serviram de norte para a construção de uma sinosfera – sociedades que emulavam a cultura chinesa usando sua escrita, adotando suas formas de governo e projetos políticos e educacionais. Principalmente depois do século 3 aec, o modelo imperial chinês, carregado das ideias de Confúcio, iria servir de inspiração para a organização política e cultural de Japão, Coreia e parte do sudeste asiático. Podemos dizer que a China, na antiguidade, serviu de inspiração para muitas sociedades em seu entorno, assim como gregos e romanos fizeram no Mediterrâneo.
O confucionismo influenciou muitos modelos de gestão política. Qual é a influência real dele ainda hoje em países como China, Coreia e Japão?
Hoje em dia, as ideias de Confúcio servem de inspiração ética, e tendem a enfatizar os aspectos meritocráticos das pessoas. Apregoam também a probidade, a austeridade e a preocupação com a comunidade. Contudo, em termos práticos, o fim do império deslocou a importância dos acadêmicos na vida política. Por essa razão, no século 20, os modelos de governança de China, Japão e Coreia adotaram ideias ocidentais, limitando a influência ‘confucionista’. A presença das ideias de Confúcio, portanto, é mais visível no pensamento ou nas posturas políticas (valorização da ordem, moral, educação, conhecimento etc.), mas não na estrutura.
As empresas asiáticas de alguma maneira também praticam esses ensinamentos?
As pessoas, nas empresas, eu poderia dizer que sim; as empresas, como uma entidade, já não posso garantir. As culturas empresariais na Ásia misturam várias ideias, de diferentes origens, e dependem muito do âmbito cultural e político. Contudo, há o aspecto da cultura pessoal, do autocultivo, da determinação no estudo e no trabalho, a valorização das redes pessoais, que vivem nos indivíduos como um elemento cultural presente.
O quanto o confucionismo está presente em outros países, como os do Ocidente?
Se hoje fazemos concursos públicos, vestibular ou se pensamos em termos de currículos educacionais, devemos isso a Confúcio e seus continuadores. Foram eles que criaram a ideia de processos seletivos para as universidades e para a administração pública (o famoso exame imperial ou ‘keju’), que os missionários se apaixonaram e trouxeram para a Europa. Ele também serve como uma importante referência intelectual no âmbito dos estudos filosóficos e religiosos, proporcionando uma perspectiva intercultural e universal do pensamento humano. Por fim, ele também foi um dos defensores de uma ética não religiosa, baseada na harmonia dos indivíduos através do seu aprimoramento sentimental e intelectual. Visto assim, há uma importante herança confuciana a ser melhor investigada no Ocidente.
Os ensinamentos de Confúcio estão muito voltados para a observação do ser humano e sua vida prática. O que ele propunha para essa melhor interação social e o quanto é importante sabermos isso?
A educação proposta por Confúcio não era voltada apenas para conteúdos, mas principalmente, para a expressão do indivíduo enquanto ator social. Visto assim, a importância das interações sociais, o respeito mútuo e a observância dos costumes da comunidade são elementos fundamentais no estabelecimento da harmonia entre os indivíduos. Por isso, Confúcio ensinava as práticas sociais (Li), mas, também, como se expressar dentro delas, garantindo a autonomia do indivíduo.
A linguagem tem sido empregada nos mais diversos ambientes sem muito cuidado com as chamadas etiquetas sociais, inclusive em ambientes institucionais. Qual a importância da linguagem e das formas de tratamento para Confúcio e o quanto ele considerava isso impactante na busca pela harmonia das relações que ele propagava?
Confúcio dizia que o sábio não maltrata nem as pessoas nem as palavras. A linguagem é o centro da preservação cultural e da comunicação social. As formas de comunicação pensadas por Confúcio visavam a definir o sentido do que se expressa, mas também manter o respeito e a harmonia – e, sem receio, penso que é quase o mesmo proposto na comunicação não-violenta de Marshall Rosenberg. Afinal, quantos conflitos criamos simplesmente por não sabermos nos expressar ou por usarmos as palavras de forma confusa? Confúcio já estava ciente disso, e pregava a ‘retificação dos nomes’, ou seja – aprender a dizer exatamente o que se quer dizer, e fazer com que isso seja compreensível com quem se fala.
E qual a importância da cultura e do conhecimento para Confúcio na melhoria das relações humanas?
A cultura é a base dos costumes; se compreendemos a cultura e suas raízes, podemos entender também seus aspectos mais complexos. Mesmo para Confúcio, a cultura deve mudar, se ela apresenta focos de tensão ou conflitos; por outro lado, e nas próprias palavras de Confúcio, “é inviável discutir com quem não tem princípios comuns”. Sem ter, portanto, os mesmos princípios, de fato, não buscamos as mesmas coisas, e o conflito pode ser inevitável. Mesmo assim, cumpre salientar: Confúcio nunca acreditou em uma ‘igualdade’ ou ‘uniformidade’; ele sabia que as pessoas são diferentes e, por isso, defendia que elas deviam ser harmônicas entre si, mas nunca ‘iguais’ – o ideal é que cada um expresse suas diferenças e sua autonomia.
Para quem quer começar a entender mais sobre confucionismo, você recomendaria alguma leitura básica?
Gostaria de recomendar os livros ‘Daoísmo e confucionismo’ (Escala, 2020) e ‘Daoísmo, confucionismo e xintoísmo’ (Verbo, 2021), ‘Confucionismo’ (Intersaberes, 2021) e a edição dos ‘Analectos’ de Giorgio Sinedino (Edusp, 2016), além do livro ‘Confúcio e o mundo que ele criou’ por Michael Schuman (2016). São ótimos materiais para entendermos o que é o ‘confucionismo’ desde a antiguidade até os dias de hoje.
Se pudesse imaginar um comentário de Confúcio sobre as relações contemporâneas, como entre políticos e parlamentares, pais e filhos, empregadores e trabalhadores, o que acha que ele diria?
Que precisamos voltar para a escola (risos). O centro de todas as suas teorias reside, justamente, em enfrentar as tensões que existem nessas relações por causa das desigualdades, da assimetria, da falta de autocultivo e da ignorância, entre tantas outras coisas. Ainda não nos educamos para sermos harmônicos; ainda não nos conscientizamos devidamente da importância da ecologia; ainda não sabemos, por fim, lidar com nossos sentimentos. Como, pois, pensar o futuro?
Em um mundo marcado por rápidas transformações tecnológicas e sociais, uma comunicação em rede sem regulação e ações de marketing altamente agressivas quais princípios do confucionismo podem oferecer orientações sólidas para enfrentar os dilemas éticos atuais?
Estudar, ler de forma crítica, pensar autonomamente, agir de forma ética e independente e, no entanto, fazê-lo pensando na comunidade. Respeitar a diversidade, admitir a diferença e valorizar o conhecimento são caminhos para, ‘no meio do enxame’, criarmos para nós uma vida mais saudável. Contudo, numa sociedade que gerou o bordão ‘não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe’, as ideias do velho sábio chinês parecem ainda os primeiros raios de sol de uma aurora tímida, que aponta para o caminho de uma sabedoria distante, calcada no saber e no respeito... – mas realizável, sim!