Ações devem se alinhar a discurso das marcas na luta antirracista
“Eu não consigo respirar”: as últimas palavras de George Floyd, homem negro sufocado por um policial branco enquanto estava algemado e de bruços, se transformaram no símbolo de uma revolução equiparada à dos direitos civis norte-americanos nos anos 1960. Protestos que começaram nos Estados Unidos e se espalharam mundo afora chegando, inclusive, ao Brasil. O marketing entrou na conversa e marcas se posicionaram. Mas até que ponto há veracidade e ações no discurso?
A Nike foi uma das primeiras. A marca transformou seu icônico slogan Just Do It em Don’t Do It. O recado foi claro: há um problema real nos EUA e virar as costas para o racismo já não é possível. Até a Adidas, eterna rival, endossou o discurso retuitando o vídeo. Disney, Netflix e Globoplay, entre outras, também se posicionaram.
Na opinião de Samantha Almeida, head de content da Ogilvy Brasil, é preciso lembrar que a publicidade não apenas reflete a sociedade, mas a influencia. “A publicidade tem o poder de criar modelos e valores. Mas também de usá-los ao ponto de torná-los vazios, e só se descobre o limite entre um e outro olhando para dentro. A luta antirracista, que tem uma das suas expressões o movimento Black Lives Matter, não é conversa para entrar ou um projeto a se apoiar, ela é, na verdade, a maior de todas as manifestações sociais em prol dos direitos civis e contra o genocídio da população negra desde os protestos dos anos 1960”, opina.
Outro ponto que, muitas vezes, é esquecido pelas marcas: há negros na sua empresa? Para Adriana Barbosa, CEO da PretaHub e presidente da Feira Preta, é preciso olhar a questão da equidade racial dentro do contexto corporativo a partir de alguns eixos, como a contratação de pessoas negras. “Além de desenvolvimento de carreira para cargos e posições com tomada de decisão”, menciona.
“As empresas precisam olhar para dentro do seu quadro de funcionários e fazer uma análise desse quadro para ver se ele tenta, pelo menos, ser igualitário. Obviamente que a maioria das empresas brasileiras não tem essa igualdade, mas o que elas estão fazendo para mudar essa situação? […] Reformas e revoluções como as que estamos vendo, que visam trazer conscientização, só ocorrem de dentro pra fora”, opina Ad Junior, head de marketing da Trace Brasil.
Uma pesquisa da Morning Consult com quase dois mil norte-americanos chegou a uma conclusão: as marcas não devem ficar em silêncio em momentos como este. As respostas, porém, divergem em linhas geracionais. Quase três quartos (73%) da geração Z e geração Y disseram que veem marcas que apoiam os manifestantes nas mídias sociais de maneira mais favorável, enquanto na geração X e entre os baby boomers este número é de 39%.
Algumas marcas foram além dos posts de apoio: o YouTube prometeu doar US$ 1 milhão para causas de justiça social. O Facebook, por sua vez, garantiu US$ 10 mi para a luta antirracista. Segundo a pesquisa da Morning Consult, mais da metade das pessoas ouvidas afirmam que doações para grupos de justiça social aumentam a favorabilidade da marca.
“Só fazer hashtag, mudar logo, compartilhar frases do Martin Luther King, não é eficiente. Quais marcas estão fazendo publicidade com mídia negra e influenciadores negros? Quanto tempo e dinheiro essas marcas investem para mapear e investir em quem realmente está próximo da comunidade negra?”, questiona Silvia Nascimento, fundadora do portal de notícias Mundo Negro.
“A sociedade amadureceu e vivemos a era da hiperconectividade”, explica Dario Menezes, professor de branding da pós-graduação de marketing da ESPM Rio. “Nos novos tempos, por conta da velocidade de disseminação da informação, tudo é muito rápido e viraliza. Tudo precisa ter prova e contraprova. Não adianta apenas uma bela sacada publicitária ligando a marca a uma ação pontual que vai render vários likes de pessoas que você não vai conseguir desenvolver nenhum tipo de relacionamento futuro”, complementa.
No caso do Brasil, é preciso entender o contexto do assunto. Afinal, segundo o IBGE, os negros são maioria da população, com 54%. Já nos EUA, este número é pouco mais de 13%. “Não basta apenas traduzir o posicionamento global. No Brasil não tínhamos George Floyd. Tínhamos Agatha, João Pedro, Marcos Vinicius, Cleiton, Carlos, Roberto, Wesley, Wilton e tantos outros”, relembra Ricardo Silvestre, fundador da agência Black Influence.
Segundo o Anuário da Violência do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 75,4% dos mortos pelas polícias brasileiras eram negros. Já nos EUA, um estudo da ONG Mapping Police Violence apontou que negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos.
“Costumo dizer que mais do que reagir a um cenário, as empresas precisam agir. O oportunismo vem muito de reações cirúrgicas sobre temas que as empresas querem passar um posicionamento de boazinhas, mas na hora H, que é todo dia, elas sequer têm uma política de promoção da igualdade social, lideranças negras ou tratam o tópico da igualdade racial com prioridade”, comenta Luana Génot, diretora-executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR).
Opinião semelhante é a de Luana Ozemela, CEO da Dima, doutora em economia e professora pesquisadora de gênero e políticas públicas da universidade Hamad Bin Khalifa da Fundação do Qatar. “Como diz o ditado ‘Uma ação fala mais que mil palavras’. Marcas precisam assumir uma posição clara e agir com o apoio de aliados experientes no tema. As empresas precisam efetivamente entender por que existe a hashtag VidasNegrasImportam e saber responder contundentemente quando questionada, sem ensaios, sem balelas. O antirracismo precisa estar enraizado na cultura institucional da empresa”.
Para Jaqueline Fernandes, fundadora do Instituto Afrolatinas, algumas marcas ainda não entenderam que consumo consciente vai além do olhar óbvio para os impactos ambientais. “A população negra está, também, cada vez mais interessada em se ver nos produtos e investir seu poder de compra em empresas que se engajem e posicionem em relação à questão racial. Para garantir isso, conta muito saber o histórico da marca. Não adianta forçar a barra ou pegar carona em hashtags. É preciso construção e diálogo”, avalia.
“Lembro-me de uma época que todo mundo falava do ‘teste do pescoço’, no olhar ao entorno e ver quantas pessoas negras estão servindo ou sendo servidas. […] Mas o que ficou de tudo isso? Quais mudanças realmente estruturais foram conquistadas? Por isso cabe aos gestores, lideranças e pessoas brancas em geral, que ocupam cargos de poder e privilégio, combaterem o racismo nos seus microuniversos. Assim acredito numa mudança cultural, construída a muitas mãos e não com caráter de campanha. Vidas negras importam 365 dias por ano, 24 horas por dia”, afirma João Souza, presidente e head de futuros inclusivos do FA.VELA.
Seguindo as orientações dos especialistas, o sonho de um velho pastor de viver em um mundo onde crianças não serão julgadas pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter, talvez, um dia, se concretize. Um mundo em que João Pedros, Ágathas, Kauês e Kauans podem viver em paz.