Adeus anos velhos

O mundo mudou. Mesmo que dentro de alguns anos as coisas possam parecer que voltaram ao normal, nada será como antes amanhã. Se os seres humanos individualmente, depois de um trauma severo, raramente conseguem voltar a ser o que eram, imagine a humanidade inteira submetida ao que está acontecendo. Não, nada será como antes. A ficha ainda não caiu, até porque nós temos este mecanismo de filtrar os acontecimentos muito dramáticos, mastigá-los até poder engolir. É uma solução para não ficarmos loucos. Porém, hoje, o buraco é tremendamente mais embaixo.

Nem o mais delirante dos ficcionistas poderia ter criado o drama que estamos vivendo. Não teria sucesso porque seria considerado inverossímil demais. A reviravolta da nossa realidade supera a imaginação mais fecunda. Tudo precisa ser repensado, adaptado. Desde o que comemos ao que vestimos, como nos deslocamos, como nos divertimos. Tudo o que poderia levar anos para ser experimentado, polido, adaptado, estará mudado em meses. As diferentes muletas mentais que usávamos para caminhar pelo desconhecido foram retiradas sem aviso e sem remédio.

Para onde você olha, há um mundo novo. Verdades estabelecidas caem por terra como balões apagados. Até metáforas babacas como essa perderão seu espaço, pois certos costumes que engatinhavam cresceram e dominaram nossas vidas. Uma coisa puxando a outra, puxando a outra, puxando a outra e caiu tudo de repente. Os costumes, os valores, os métodos e as crenças terão se transformado.

É difícil crer, mas vamos viajar de outra forma, comer de outra maneira, vestir outras roupas. Exagero? Não, nem um pouco. Dê uma olhada no que estará mudado quando pudermos sair de casa sem medo e sem máscara. Nossos caminhos, nossa maneira de nos deslocarmos e nossos contatos com os semelhantes terão outros enredos. É claro que teimosamente vamos tentar fazer as coisas se parecerem com o que eram. Em alguns casos, com relativo sucesso. Mas sempre será um passo adiante do que seria o andar da carruagem se o mundo seguisse seu caminho na velocidade habitual. Demos um tropeção no ritmo da história. Um pouco aqui, um tanto mais ali, um tombo acolá e teremos percorrido o que talvez levasse séculos.

No Brasil, então, nem se fale. O destino acabou utilizando a pandemia para trazer à luz um universo que estávamos deixando para pensar mais tarde. Não sou otimista a ponto de achar que só porque fomos submetidos a este choque de realidade, estamos vivendo um início de mobilização para, em conjunto, solucionar os nossos problemas. O mecanismo da preguiça nos é inerente. Vamos achar um jeito de torcer a realidade, para nos livrar da cara feia e suja da desigualdade, do preconceito de raça, cor e costumes.

E vamos ter êxito em parte, pois sabemos há séculos esconder o sol com as mais variadas formas de peneiras. Mas sempre haverá um raio mais teimoso que vai se desviar das tramas e expor nossas misérias. E nós estaremos um pouco mais dispostos a enxergar. Acredito que se alguma lição podemos retirar destes dias malucos, um pouco mais de consciência vai sobrar. É bem verdade que estamos acostumados há séculos a andar num determinado ritmo. Mas há bem mais de um século não vivemos uma situação como esta.

É preciso juntar guerras, revoluções, epidemias, desastres naturais para encontrar alguma semelhança do passado com o que estamos vivendo. Ainda assim, há que se acrescentar novidades como as redes de comunicação, os meios de transporte e a própria sofisticação da moderna medicina. Não, não há paralelos. O passado dificilmente vai nos ensinar alguma coisa. Como na música, nosso mundo caiu. E, também como na música, nós que temos de aprender a levantar.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)