Ano bom
Passei o fim de ano em casa. Por vários motivos, os principais foram aparentemente contrastantes: minha neta e meu cão. Por que a neta? Acontece que os pais da Cora, com um ano, não quiseram expor a menina aos atropelos da praia congestionada na queima de fogos em Copacabana e resolveram vir para minha casa. Foi o melhor presente que eu poderia ter recebido no antigamente chamado ano bom. A energia e a alegria da menina resplandeceram na casa, como a superlua branqueou o céu. Totalmente babão, fiz as mais doidas maluquices imitando desde pintinhos amarelinhos a gatos miando em telhados. Rei do desafino, deseduquei o ouvido da criança desentoando as canções idiotas que consegui me lembrar, já que parece que ela desaprova minha interpretação do Fígaro. Ao contrário do que fazia com minha filha, poupei a menina de canções pornográficas que marcaram minha infância. Explico a preocupação. Uma das maiores vergonhas que passei na minha vida foi quando a Silvia, minha filha, um doce de menina, com pouco mais de 4 aninhos, na creche, começou a contar para as professoras a história do Chapeuzinho Vermelho.
Digna de antologias literárias no seu poder de síntese, ela começou: “bem, tinha um lobo que era mau para caralho…” Quando soube desse brilhante prólogo, diante do olhar de censura e vergonha da mãe, ainda tentei disfarçar, dizendo que não podia imaginar onde ela tinha adquirido aquele vocabulário. Por isso, o repertório com a Cora foi mais comportado. No máximo cantei Terezinha de Jesus que deu a mão para o terceiro cavalheiro depois da queda. Quanto a meu cão, o Café, criativíssimo nome de um labrador preto, ele está morrendo. Sem sofrer, segundo o veterinário, mas já velhinho, cansado, com dificuldade para andar. Ele detesta fogos e achei que a essa incapacidade de se movimentar aliada ao seu pavor pelos estampidos, poderia ser muito angustiante para ele. E fiquei em casa, para devolver com palavras e afagos o imenso amor que ele sempre teve por todos da família e – modestamente – por mim em especial. Comprei uns petiscos e ossinhos e tentei fazê-lo compreender que o barulho era de alegria e não ameaça, mas o coração dele disparava a cada som mais forte e mais perto. Nessas horas penso em fazer uma campanha contra fogos barulhentos, pois sei que existem muitos outro cães como o Café. Mas me sinto um pouco ridículo e tento explicar para ele que os humanos são assim mesmo e não há o que fazer. E, pensando bem, é melhor o barulho de rojões do que de metralhadoras. Vi os fogos pela televisão, na sempre magnífica cobertura da Globo, e, tal como a multidão na praia e nas casas, admirei a deslumbrante bunda da Anitta, uma unanimidade entre homens, mulheres, homo e trans de todos os matizes. Uma curiosidade. Fui procurar no Google mais informações sobre a Anitta e descobri que ela também é um nome de remédio, que serve para o tratamento de Helmintíases e tem ação efetiva contra nematódeos, cestódeos e trematódeos, indicado no tratamento de Enterobius vermiculares, Ascaris lumbricoides, Strongyloides stercolaris, Ancilostomíase, Trichuris trichiura, Taenia sp e Hymenolepis nana.
Em outras palavras: Anitta canta, encanta, lidera e ainda serve para tratar de diarreia. Já que estou falando de meu fim de ano, vamos dar espaço aos gatos. Cora Ronai (o mesmo nome de minha neta, tão linda como ela) fala de seus gatos no segundo maior jornal do país, com a graça deles: sutil, brincalhona e cagando para opiniões divergentes. Pois meus gatos ficaram putos com tudo no meu fim de ano. Sumiram. Nos dois casos sou protagonista. O Café me ama. Os gatos me acham um babaca. Os gatos sumiram porque sabem, deuses que já foram, o quanto existe de ridículo nesses seres que os atendem. A barulheira que fazem. Os beijos e abraços. Eles sabem que nós somos os mesmos seres menores que os trataram como deuses e depois os torturam na Idade Média. De alguma forma sua independência nos sinaliza que eles conhecem quem somos. Transitórios nesta terra e completamente idiotas, estamos nos destruindo. Diferentemente dos ratos, dos gatos e das baratas, nós nos odiamos uns aos outros. Então neste fim de ano eu juntei as riquezas que tenho. Minha neta, meu cachorro morrendo, meus gatos filósofos, meus amigos e vocês todos que há muitos anos me suportam nestas páginas. Feliz Ano Novo. Sério.