Atualização do WhatsApp leva a reflexões sobre a gestão de dados
O compartilhamento de dados entre o WhatsApp e os parceiros de negócios do Facebook passará a ser obrigatório a partir do dia 15 de maio. Segundo o serviço móvel de mensagens, a atualização da política de privacidade busca dar mais transparência sobre a coleta de dados dos usuários e facilitar conversas opcionais com empresas, melhorando a experiência dos 175 milhões de usuários que utilizam o mensageiro de Mark Zuckerberg diariamente em todo o mundo para entrar em contato com empresas.
A mudança prevê que os dados originados de interações comerciais poderão ser usados para personalizar anúncios. O WhatsApp não apagará a conta do usuário que recusar o novo termo de serviço, mas a pessoa não poderá ler nem enviar mensagens, a principal funcionalidade do aplicativo.
Anunciada em janeiro, a decisão foi adiada de fevereiro para maio em função de dúvidas que acabaram incitando um movimento de debandada. Na busca por soluções capazes de rentabilizar a marca adquirida por cerca de US$ 21,8 bilhões em outubro de 2014, o Facebook parece ter soprado a onda perfeita para a concorrência.
O professor Nicolo Zingales, da FGV Direito Rio, confirma essa percepção. “Quando anunciado, sobreveio notificação de aumento no número de downloads na App Store e Google Play de aplicativos de comunicações concorrentes como Telegram e Signal”, comenta o advogado, frisando que as respectivas plataformas disponibilizaram inclusive mecanismos automatizados de exportação de grupos entre os sistemas para otimizar a migração.
Um estudo da empresa de pesquisa Toluna ajuda a explicar o quanto as pessoas estão realmente dispostas a abdicar do WhatsApp. Cerca de 13% dos respondentes cogitam mudar para outro aplicativo de mensagens, principalmente o Telegram, mas 62% não pretendem interromper o uso do app. “Acredito que não aconteça um movimento forte de saída. A comunicação feita pode ter gerado certa insegurança, mas não um descontentamento a ponto de causar a exclusão da rede social”, contrapõe Renata Bendit, customer sucess manager da Toluna na América Latina.
Invasão ou desrespeito à privacidade são os principais motivos elencados pelos usuários que pretendem deixar o WhatsApp. Já o grupo que continuará usando o app argumenta que a mudança não afetará as informações já coletadas.
Transparência
O imbróglio deixa algumas reflexões. Apesar da predisposição para a mudança, o mercado de trabalho brasileiro utiliza o mensageiro em larga escala, dificultando a migração. Outro aspecto assinalado por Zingales é que o WhatsApp figura como um dos poucos aplicativos beneficiados pelo zero rating. Esta parceria é celebrada entre as operadoras de telecomunicações e alguns softwares de comunicação a fim de permitir o uso ilimitado, ou seja, sem gasto dos dados do plano contratado pelo usuário.
É importante considerar também o novo contexto moldado pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – promulgada em 2018 e vigente desde o mês de setembro do ano passado -, que ainda é embrionário no mercado brasileiro. “Embora muito se tenha progredido, ainda percebo um longo caminho a ser percorrido”, indica o especialista da FVG Direito Rio.
Para o Google, a LGPD deu continuidade ao modo como o buscador encara o assunto. “Temos como princípio garantir que todo produto ou serviço siga os parâmetros mais altos em termos de privacidade, segurança e transparência desde a sua concepção”, afirma Giovanna Ventre, advogada no Google Brasil e integrante da IAPP (International Association of Privacy Professionals) em São Paulo.
Erguidas sob os pilares de transparência, controle, escolha e segurança, as normas de privacidade do Google incluem ferramentas de monitoramento da conta pelos usuários, que permitem ativar ou desativar a personalização de anúncios, definir parâmetros para a exclusão automática do histórico de localização, realizar a checagem de senhas, o download dos dados pessoais ou a sua migração para outros serviços, resguardando o direito à portabilidade.
O check-up de privacidade é um recurso utilizado, em média, por mais de 200 milhões de pessoas anualmente.
“Entendemos a importância de oferecer os mesmos princípios de controle em nossas plataformas – Maps, Gmail, Pay, Cloud e Ads, entre outras – e trabalhamos para que todas estejam alinhadas às diretrizes de legislações como a LGPD”, reitera a especialista em direito e tecnologia.
Consentimento
Nicolo Zingales alerta que “não se trata de problemática envolta exclusivamente à transparência. Carece de opções para consentimento granular, concedendo aos usuários a possibilidade de gerir o uso dos seus dados pessoais”, pontua. O usuário que cria uma conta no Google, por exemplo, é orientado sobre quais informações são tratadas, e como ele pode controlar a coleta e o uso dos seus dados. É possível ainda desativar as soluções que permitem à plataforma oferecer anúncios personalizados.
“Em 2020, ajustamos o recurso de exclusão automática para se tornar o padrão nos principais produtos do Google”, aponta Giovanna. Os usuários ainda têm acesso a formulários online para solicitar informações e tirar dúvidas. “A forma mais eficiente de assegurar escolhas robustas para os usuários é garantir que eles possam exercer escolhas efetivas”, observa a advogada.
Além de instruir as pessoas a controlarem os seus dados ajustando as configurações de privacidade, o Google produz vídeos e publicações regulares em seu blog, como Dia da Privacidade de Dados: sete maneiras de proteger as suas informações; protegendo suas informações privadas; o nosso compromisso com a LGDP no Brasil; como fazemos para manter você seguro e no controle da sua privacidade; e um 2021 com mais segurança para todos na internet.
“No começo deste mês, anunciamos mais um passo no nosso compromisso de não criar identificadores alternativos para rastrear pessoas que navegam pela internet, com o fim do uso de cookies de terceiros”, acrescenta Giovanna.
De acordo com a advogada, a plataforma não utilizará outros tipos de identificador em seus produtos. Chamado Privacy Sandbox, o projeto permite trabalhar com empresas de diversos setores, inovando e, ao mesmo tempo, protegendo o anonimato sem deixar de trazer resultados para os anunciantes e editores.
Postura verdadeira
Lidar apenas com os recursos jurídicos não garante a segurança dos dados nem os direitos dos titulares. Termos contratuais não significam adequação à LGPD. “A formalização de documentos deve ser um espelho das medidas efetivamente implementadas internamente nas empresas”, adverte Zingales.
O professor explica que a atualização divulgada pelo WhatsApp contém aspectos questionáveis acerca da adequação aos termos legais. “O Idec já impetrou ação judicial questionando”, comenta o advogado, referindo-se ao Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.
É essencial?
A padronização dos documentos é outra ressalva. Muitos deles não adentram às peculiaridades que podem eventualmente inferir na escolha dos titulares em concederem ou não o uso de seus dados pessoais. “Lembro que um dos pilares legislativos é o princípio da transparência e, convenhamos, esse pode ser um propulsionador das marcas em termos reputacionais”, sublinha Zingales.
No caso específico do WhatsApp, o advogado enfatiza que, sob a égide da GDPR (Regulamentação Geral de Proteção de Dados Europeu), a alteração dos termos não foi sequer articulada por não possibilitar aos titulares a possibilidade de escolha sobre o compartilhamento ou não dos seus dados pessoais – tratamento que não seria essencial à prestação do serviço contratado.
Para além das questões jurídicas, estão também possíveis incongruências de comunicação. O professor da FGV ressalta que a estratégia escolhida pode confundir o cidadão leigo. “É interessante destacar que nas FAQ publicadas pelo WhatsApp bem como do consequente debate gerado na mídia, encontra-se uma declaração expressa no sentido de que esses dados não serão utilizados para o propósito de exibir anúncios. E também não menciona sobre os acessos feitos pelo Facebook, fato que dificulta enxergar os respectivos usos para essas ou outras finalidades”, salienta.
O dono dos dados
A falta de clareza na divulgação das mudanças pode até encobrir os possíveis benefícios para aqueles que passaram a ter nas plataformas digitais a sua única fonte de receita desde o início da pandemia da Covid-19. “O bem informar demanda o manejo de linguagem que seja acessível às massas que não conhecem a matéria. Afinal, quem de fato lê e compreende os termos contratuais?”, indaga Zingales.
Simplicidade, objetividade e clareza são fundamentais. “O uso de mecanismos didático-pedagógicos podem ser uma ótima alternativa. O compromisso de fomentar a cultura de proteção de dados é de todos os atores sociais”, defende o professor da FGV. Procurado, o WhatsApp não se manifestou, mas explica por meio de comunicações oficiais que a atualização não aumenta o compartilhamento de dados com o Facebook e não afeta a privacidade das mensagens pessoais dos usuários do WhatsApp, que são protegidas por criptografia, garantindo apenas ao remetente e ao destinatário o acesso ao conteúdo das conversas.
A prorrogação do prazo das alterações para o dia 15 de maio ocorreu a fim de que os usuários tivessem tempo de tirar as suas dúvidas. O próprio Status na plataforma foi utilizado para prestar os esclarecimentos, além da publicação de páginas com perguntas frequentes no site. Implementou ainda novas notificações no aplicativo para avisar os usuários sobre a atualização e facilitar a análise dos termos pelos usuários, que ainda contam com conteúdos informativos na página da central de ajuda.
Da polêmica, fica a certeza de que o usuário é o único dono dos seus dados. Pode trancá-los ou liberá-los quando quiser, não quando uma empresa mandar.