Cachê não é propina
A recente polêmica a respeito dos testemunhais de Tony Ramos para a Friboi me lembram outras polêmicas sobre o mesmo tema, tão velhas como a propaganda. Teve um senador, jogando com a plateia, como faz a maioria deles, que propôs, num programa de televisão, que os artistas que recomendassem um produto deveriam ser processados junto com o anunciante, no caso de propaganda enganosa. Daí eu fiquei pensando nas celebridades todas que recomendaram votar no PT, um dos maiores casos de propaganda enganosa dos últimos tempos. E nos que foram contratados para recomendar o Pitta, o Dulcídio e tantos outros atualmente cobertos com o manto da desonra. Mas o assunto é a inveja que as pessoas têm de quem ganha um cachê para fazer testemunhais, a acachapante maioria de boa-fé.
Tom Jobim, uma vez, se mostrou irritado com a patrulha que o criticava por ter vendido os direitos de Águas de Março para a Coca-Cola. “Não entendo – dizia Tom –, consigo uma grana vendendo uma musiquinha que eu fiz e o pessoal fica bravo”. É bem verdade que chamar Águas de Março de musiquinha só existe um ser humano a quem é permitido: chama-se maestro Antonio Carlos Jobim. Mas vale o sentido. Aliás, é bom que se lembre que a maioria de nossos poetas parnasianos e escritores hoje considerados clássicos tinha na propaganda uma fonte de renda segura e bem-vinda. Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Bastos Tigre e muitos outros eram assumidos frilanceiros, alguns até cobrando uma graninha a mais para assinar suas obras publicitárias. Nunca nenhum deles teve vergonha disso. Nem seus fãs se sentiam ultrajados. Na área da música então, nem se fale. Dos eruditos como Radamés Gnatalli e Isaac Karabtchevsky, aos gênios imortais como Pixinguinha, Ari Barroso e Noel Rosa, passando por Gilberto Gil, João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius e Jorge Benjor, todo mundo melhorou a receita vendendo cerveja, Coca-Cola, óleo Johnson, whisky e margarina. Na literatura, Jorge Amado, Drummond, Manoel Bandeira e muitos outros.
Nesse caso, é verdade que alguns deles eram anúncios de bancos. Mas, no fundo, qual a diferença entre um banco e um xarope contra a tosse? Rui Barbosa recomendou remédios, Niemeyer elogiou edifícios, Burle Marx vendeu inseticida. Joelmir Betting, outro injustiçado, deu aval para o Bradesco, assim como Carlos Lira garantiu que fumava cigarros LS. Outro dia um jornalista me ligou para perguntar o que eu achava da Fátima Bernardes falar bem de presunto. Acho que ele não deve ter gostado da resposta, pois não saiu no jornal. Eu falei que se a Fátima Bernardes me recomendasse usar Modess eu, muito provavelmente, estaria cogitando em fazê-lo. Eu falei do Burle Marx? Pois o comercial do inseticida é meu. Era um produto para Casa e Jardim (e, por incrível que pareça, era o nome do produto) pois matava insetos voadores como moscas e mosquitos, além de eliminar pragas de plantas caseiras.
Na primeira reunião, Burle ficou feliz com a possibilidade de dar aquela faturada, pois tinha acabado de ganhar centenas de orquídeas e pretendia construir um orquidário no sítio. Mas, dias depois de aceitar fazer o comercial, me telefonou dizendo que tinha consultado alguns amigos e estes tinham achado que poderia prejudicar a imagem do paisagista caso ele aparecesse como garoto propaganda. Como fui eu quem escreveu o comercial, posso garantir que era uma peça bastante contida, digna do mestre. Até porque a última coisa que o cliente pretendia era gastar dinheiro para destruir o avalista de seu produto. Tive uma inspiração: pedi ao Burle o nome de seus amigos conselheiros, aqueles que tranquilamente tinham sugerido que ele perdesse o cachê. “Para que você quer o nome deles?”, perguntou Roberto. “Simples” – respondi. “Vou fazer uma vaquinha para eles pagarem o teu orquidário”. Depois de um silêncio mais ou menos longo, ele me pergunta: “filmamos quando?” O comercial ficou uma beleza. O único problema foi quando um trecho da fala de Burle dizia: “e quase não tem cheiro”, se referindo ao fato de que o inseticida era à base de água, bastante menos fedido que os inseticidas comuns à base de querosene.
Burle me chama: “Isto eu não digo, Lula, esta porra tem um puta de um cheiro de inseticida”. Tava certo o velho Roberto. Ainda que com menos cheiro que os outros, aquele inseticida cheirava bem mais do que o suave perfume do sítio dele. Retiramos a frase e o comercial foi um sucesso. Detalhe: o cliente ficou tão contente que deu o orquidário de presente para o sítio de Guaratiba. Fora o cachê.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor