Caros presidente, diretores nacionais e estaduais eleitos

A hora é de passar o cargo. Eu, que nunca quis a presidência e tantas vezes fui vice, experimentei nesses últimos oito meses estar à frente da nossa entidade, honrá-la e defendê-la, fazendo valer seus princípios, suas normas, sua orientação profissional.

Não foi fácil. Não por nós, signatários da ABAP.  Não foi fácil porque existir pressupõe interagir.

Não vivemos sozinhos.

Sempre reconheci em mim um otimista.

Quero crer que continuarei a sê-lo.

Entretanto, vivemos tempos dramáticos, pré-apocalípticos.

Parece que o mundo está em permanente estado de alerta e de emergência.

No Brasil, em particular, atravessamos um dos mais difíceis períodos da nossa história. Desde a redemocratização – e lá se vão mais de 30 anos – não enfrentávamos tanta turbulência.

É certo que nós não estamos imunes ao que se passa no país, até porque operamos no cruzamento sensível das relações políticas, econômicas e sociais.

O senso comum mais rasteiro nos descreve como vendedores de ilusões.

Nós, publicitários, trabalhamos para embalar e vender produtos e serviços. Assim, não reconhecem, em nós, um papel político. 

Trata-se, evidentemente, de um clichê, tão velho quanto a calça desbotada que, entretanto, não caiu em desuso.

A verdade, porém, é outra.

E ela começa aqui, no ideário da nossa ABAP.

Nunca precisamos tanto dele.

Nesses tempos em que assistimos, atordoados, a escalada do ódio e da intolerância, a comunicação é um instrumento estratégico para semear o diálogo e a paz.

Este é, então, o primeiro ponto de reflexão que gostaria de deixar aqui, para nós, nesta manhã.

Aquele publicitário que compartilha apenas felicidade ficou lá atrás, em um mundo que já não existe mais.

Parece que foi ontem que os mais antigos daqui, como eu, vimos surgir a televisão.

De lá pra cá, foi justamente no nosso território, no nosso ramo de atividade, no nosso segmento de negócio, que se deu a grande transformação da humanidade.

O ponto de mudança chama-se tecnologia da informação.

Nada mudou tanto quanto o modo das pessoas se comunicarem.

E este é o nosso ofício – Comunicação.

Para além das medições estatísticas, dos padrões de comportamento, dos perfis de público e dos resultados econômicos que apuramos no cotidiano do nosso trabalho, hoje temos por desafio entender que a tecnologia não é ferramenta, não é assessório, não é mídia.

A tecnologia está dentro de nós.

Ela é um modo de existência.

E este salto para o entendimento desta travessia do tempo presente nós ainda não demos.

Não vou aqui me amparar em números, em dados comparativos, nada disso. Eles não explicam os tempos que correm.

Precisamos entender que a publicidade e a propaganda habitam, hoje, a instância ampliada da Comunicação.

E, neste sentido maior, novas responsabilidades, novos compromissos se apresentam para nós.

Precisamos entender que, como a tecnologia, o consumo também é um modo de existência.

Um modo de existência que se desdobra em múltiplos diálogos coletivos, em territórios materiais e virtuais.

Diálogos travados por indivíduos em mutação.

Nesta mutação, gênero, raça, credos, se misturam, se confrontam e também se conciliam.

Na qualidade de intérpretes e indutores de desejos coletivos, nós, publicitários, precisamos aprimorar e atualizar a nossa escuta social.

Este é um desafio que se agiganta diante de um mundo em que a Ética virou artigo de luxo. 

Pensadores do tempo presente há muito vem nos alertando sobre tais mudanças.

Bauman, nosso guru mais potente, percebeu na impermanência das relações e identidades humanas algo que escorre e não se acumula. A modernidade líquida, frugal, superficial e impermanente.

Bauman foi um crítico do mundo virtual, para ele uma instância obcecada por tecnologia, com amigos às centenas e aos milhares, conectados em rede, mas com frágeis laços de afeto.

“As relações humanas estão cada vez mais flexíveis”, alertou ele. “Pessoas estão sendo tratadas como bens de consumo, ou seja, caso haja defeito descarta-se – ou até mesmo troca-se por versões mais atualizadas”.

Noutra frente, Manuel Castells evidenciou o impacto transformador da nova sociedade hiperconectada em redes – uma experiência coletiva de não mais que 15 anos – na prática política das pessoas:

“As tecnologias em rede incrementam a capacidade de informação, de auto-organização e de ação de qualquer agente, individual ou coletivo. Neste sentido, a resistência ao poder, o contrapoder, se incrementou exponencialmente, como demonstra a importância dos movimentos sociais em rede, de uma ou outra ideologia”.

Nestor Canclini, por sua vez, observou que as relações sociais historicamente mediadas nas instancias públicas de Estado, deslocaram-se para as esferas forçosamente privadas do mercado, colocando o consumo como parte da cidadania.

Bauman, Castells e Canclini nos deram as pistas desta nova dinâmica social, que enterrou antigas lógicas de consumo e redesenhou o mercado.

Temos um caminho a desbravar.

As marcas, que tanto afirmamos em nosso dia-a-dia do trabalho, enfrentam a ameaça de crescente ocaso no mundo inteiro, segundo inúmeras pesquisas.

Hoje, o que determina o consumo não é mais e apenas a mercadoria, em si, mas o que ela representa. Seus valores.

Se por trás de um produto há qualquer ação criminosa, o consumidor condena e boicota. E essa condenação e esse boicote espalham-se que nem rastilho de pólvora na escala planetária.

O consumo contemporâneo se organiza e se estrutura em grupos e redes. Norteia-se por práticas solidárias e de comércio justo. Articula-se com a pauta da humanidade. 

Não vamos aqui esgotar o assunto, que é denso e pede fôlego.

Mas podemos – e devemos – tomar ar para mergulhar mais fundo na reflexão sobre este tempo em que vivemos.

O tempo que ousamos interpretar e, como profissionais da Comunição, temos que por ofício mediar.

Este é um debate do qual não podemos fugir. Um debate a enfrentar. As agências de publicidade precisam encontrar o seu novo lugar social.

Entre a perplexidade e o espanto, temos frequentado muito menos do que devíamos as pautas dedicadas à economia, à política, à arte, à cultura e ao comportamento.

Não sei se concordo com os que acham que a publicidade já está à beira de uma crise de credibilidade, mas tenho a certeza de que temos uma credibilidade a zelar.

É simplista criminalizar o marketing político, assim como é um erro criminalizar a política representativa, um pilar do edifício da democracia.

Sem  política não há liberdade. Sem liberdade não há comunicação.

Eis porque, nós publicitários, temos hoje o dever inadiável de participar e contribuir para a reforma política que o Brasil exige. Melhor guarda-chuva que a ABAP não há. Afinal, há 68 anos,  aqui defendemos interesses corporativos e de cidadania que passam pelos princípios de ética, da trasparência e do espírito republicano.        

Antes de me despedir, quero deixar registrada a minha inabalável confiança na nossa principal matéria prima – a Ideia.

É e sempre será ela – a Ideia – a essência da atividade publicitária.

A Criação é a energia que nos move.  A razão de ser que nos diferencia de outras profissões. 

E as ameaças crescentes que tentam subtrair seu valor, ameaçando a própria razão de ser e sobrevivência das agências, exigem resposta radical.

Aos que assumem agora a presidência e as novas diretorias, por expressar o que sinto neste momento, tomo emprestado um achado de esperta filosofia de Eduardo Dussek em depoimento no Museu da Imagem e do Som carioca, há poucos dias: O SONHO DA GENTE PODE NÃO LEVAR A GENTE AO SONHO, MAS FAZ VOCÊ SAIR DO LUGAR”.

Armando Strozenberg, chairman da Havas Brasil, fez esse discurso durante a cerimônia de posse da nova gestão da Abap, em que passou a presidência para Mario D’Andrea