Carta de um confinado

Estou preso em casa. Cheguei de São Paulo, para onde fui por um motivo de transcendental importância: beijar minhas netas de dois e quatro anos. Era o aniversário da mais nova, Cecília. Quando fui, o novo coronavírus era apenas uma incógnita. E, enquanto eu estava no zoológico ou na “padoca” vendo, embevecido, elas não só escolherem o que comer, como dizê-lo ao garçom, a doença virou pandemia. Meu voo já estava meio vazio, e o motorista relatou uma diminuição concreta no número de passageiros. Rádio do táxi ligado, ouvimos notícias em sucessão como me lembro de ter visto nos filmes de guerra. Só faltou Orson Welles avisar que se tratava de um programa ficcional, como Guerra dos Mundos, que causou pânico em várias cidades dos Estados Unidos. Devo ter sido o último avô que beijou netos.

Não o faria hoje e – pelo que escuto – não farei nos próximos dias. Interei-me das notícias no caminho de Congonhas, com as janelas do carro abertas, deixando entrar um desagradável bafo quente, mas diminuindo as chances de contagio, pois algum dos três – motorista, Silvana e eu – poderia, sem saber, estar espalhando o vírus. Viciado em agarramentos, não sei como me encontrar com pessoas que amo sem troca de beijos e abraços.

Vá lá que é mais adequado para não ser infectado ou infectar. Mas encontrar um Zé Guilherme, um Manoel Thedim, uma Polika Teixeira, um João Bosco, sem o obrigatório abraço e o estalado beijo, vai ser difícil. É quase como tomar aqueles xaropes que mães enfiavam na goela dos filhos, juntamente com as mais inúteis palavras jamais pronunciadas: vai fazer bem! Na verdade, é uma lição de vida: muita coisa amarga pode ser para o bem.

Fizemos uma reunião de guerra com o pessoal que trabalha na casa, montando diferentes horários e diferentes transportes para diminuir a chance de contágio. O marido da cozinheira foi a pessoa que melhor se posicionou. Prometeu deixar um aviso na porta de casa: “Estou no bar. Encontre-me lá”. E, ainda por cima, desenhou algo que ele entendeu como retrato do Chico Gunha, uma bola de pingue-pongue com anteninhas. Espero sinceramente que, ao procurá-lo, o vírus se perca no caminho. Um entreparenteses muito importante é elogiar com fé o ministro da Saúde. Um raro exemplo de tranquilidade e sensatez.

Quanto ao chefe dele, não desapontou. Falou e se comportou como sempre. Um atabalhoado. Daqui do alto (moro no Cosme Velho) vejo as ruas cada vez mais vazias. Ouço relatos de amigos surpreendidos pela rotina doméstica, enquanto outros descobrem algo que jamais lhes passou pelas cabeças: como as roupas são lavadas e qual a rotina que faz a casa parecer arrumada. Aqui não se trata de atitudes machistas. Raras de minhas amigas são “do lar”, mas várias delas, além de comandar emissoras de TV, clínicas de saúde, comparecer ao fórum, encontram tempo para verificar se as toalhas estão fazendo pendant com a louça sanitária. Uma das razões que tenho para não desejar viver em passadas eras é que, via internet, a boataria não se cria.

Meia dúzia de cliques. É o que custa verificar se alguma informação é verdade ou mentira. Isso é importante, pois muito do que tomamos conhecimento via internet não passa de deslavada mentira. E num governo que escolheu a intriga como método, a rapidez da verificação torna-se indispensável. Reivindicando não sei bem o quê, minhas galinhas não estão botando ovos. São ingratas as galinhas. Dou-lhes cardápio variado, espaço para ciscar, ração especial e minhocas, em troca de ovos, e elas diminuíram a produção. Seria falta de galo? Será que terei de comprar um galo para as galinhas, já que não existe, acho eu, alternativas? Nunca ouvi falar de galinhas usando qualquer tipo de equipamento de masturbação. O popular consolo. Tão logo o confinamento acabe, sairei para comprar um galo.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com