Cinzas
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor
Chegou Segunda-Feira de Cinzas. Segunda, sim, já que a Quarta-Feira aqui no Rio é pleno Carnaval. Entre Terça Gorda e o domingo são realizados desfiles de mais de 100 blocos, entre os autorizados, e o Desfile das Campeãs no Sambódromo. Para um país em que, no século passado, as emissoras de rádio, a partir da Quarta-Feira de Cinzas, só tocavam música clássica, a evolução em direção ao diabo tem sido bem grande.
Nas religiões cristãs, a Quaresma — que se inicia na quarta-feira, que é de cinzas exatamente porque é o dia em que os fiéis são marcados pelas cinzas da queima das palmas usadas no Domingo de Ramos do ano anterior — é um tempo de recolhimento e oração. Nós já esculhambamos com isso e a farra avança pela semana.
Algumas amigas, sem saber que obedecem a uma tradição milenar, praticam as asceses, que são, na religião, um conjunto de práticas austeras destinadas a purificar a alma. No caso delas, o propósito é dar uma desintoxicada nas consequências da zona carnavalesca, principalmente no que se refere à comida e à bebida.
Durante o Carnaval, mais uma vez fui ao camarote da Rio, Samba e Carnaval assistir aos desfiles de domingo e segunda e não resisto ao lugar-comum: é, sem dúvida, o maior espetáculo da Terra, um evento que só 50 anos de treino e aperfeiçoamento explicam. Um know-how que se pode comparar ao cinema americano, ao queijo francês, ao balé russo e ao chocolate suíço. Não há como imaginar que possa dar certo um espetáculo estrelado por quase 40 mil pessoas usando 300 fantasias diferentes, acompanhadas por 7 mil percussionistas, 20 cantores, 30 músicos, 60 imensos carros alegóricos e 50 destaques durando 25 horas. No entanto, erra-se menos num desfile de escola de samba do que na maioria dos espetáculos céu aberto ou em teatros.
E seja a leitora ou o leitor que me lê chegado a qualquer tipo de sexo, um desfile de escola de samba é, no mínimo, uma celebração à beleza do corpo humano. Repetindo Drummond eu passei dois dias me perguntando pra que tanta bunda, tanto peito, tanta coxa, meu Deus? Mas meus olhos, esses não perguntavam nada.
Sobre o Carnaval, tirando Caras, Quem e o New York Times, especializados no assunto, uma leitura obrigatória (obrigatória mesmo) são dois livros lançados este mês. Sem ter este propósito, os dois se complementam e trazem para análise aspectos diferentes da festa. Um deles, organizado por Luiz Carlos Prestes Filho, traz entrevistas com Anísio Abraão David, Aílton Guimarães Jorge (Capitão Guimarães), Luizinho Drummond e Carlinhos Maracanã. São depoimentos que tentam explicar como funcionam os bastidores de uma escola de samba e a história de seu desenvolvimento, principalmente a relação com o poder público e a profissionalização. Pode ser lido como um excelente livro de autoajuda negocial, desses que os grandes líderes empresariais explicam por que um empreendimento deu certo. O outro, escrito pelos jornalistas Aloy Jupiara e Chico Otávio, relata a aliança entre a repressão e o Jogo do Bicho, que profissionalizou o crime organizado e — na opinião dos jornalistas — fez do Carnaval um instrumento de marketing para a aceitação social dos contraventores, traficantes, contrabandistas e torturadores do regime militar. Seus alvos são exatamente Anísio, Guimarães e mais o dirigente esportivo (e também bicheiro) Castor de Andrade.
Curioso é que o autor do livro que, digamos, mostra o lado positivo dos dirigentes do Carnaval é do filho do grande líder comunista Luiz Carlos Prestes. No livro, há uma orelha profundamente elogiosa do ex-magnífico reitor da UFRJ e presidente do BNDES, Carlos Lessa, e de Tânia Fayal, que participou da luta armada contra a ditadura. Já os dois jornalistas são de O Globo. No mínimo uma exaltação à democracia, à liberdade de opinião.