Conversa de maluco
Conversam entre eles. Examinam os números. Nada mais óbvio, contundente, estarrecedor. Voltam para casa. Fazem exatamente o contrário. Padecem do PCF (Paroxismo Crônico das Farmácias). É preciso despertar a serpente. Isso mesmo, aquela que se encontra enrolada na taça. A Taça Higéia, que representa a tal da farmácia moderna. Higéia, filha de Esculápio, deusa da beleza saudável, da sanitariedade. Enquanto o pai se preocupava com a cura, a filha cuidava da prevenção. Esculápio foi para a medicina; Higéia, para a farmácia. Hoje descansa na Taça – a cura por meio do que se ingere, a cura pelos medicamentos. É preciso despertar a serpente. As grandes redes, e os donos dos milhares de pequenas farmácias, carecem de orientação. O PCF alcançou o grau máximo.
Há pouco mais de um ano, tratei desse assunto. Retorno agora diante dos números que acabam de ser divulgados pela Abrafarma (Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias). E conferidos pelo DCI, através do repórter Pedro Arbex. Uma vez mais, tudo o que conversam entre eles, donos de farmácia e das redes, mais que confirmado: “Margem de lucro maior faz farmácias subirem oferta de não medicamentos”. Você já sabia? Todo mundo sabia e sabe. Inclusive os empresários do setor. Só que na prática a sabedoria – ou burrice, ou paroxismo – é outra.
Nos últimos 15 anos, o crescimento acumulado dos “não remédios e medicamentos” – leia-se, produtos de perfumaria e higiene pessoal – foi de 132,61%. Nesses mesmos 15 anos, os remédios tiveram um crescimento acumulado de 92,15%. As grandes redes confirmam – nem poderiam manifestar-se de forma diferente – a eloquência, o berro dos números. Na Raia Drogasil, a maior do país, os “não remédios e medicamentos” respondem por quase 30% do total das vendas e mais da metade dos lucros. Rigorosamente, o mesmo ocorre nas demais redes. Sempre os “não remédios e medicamentos” respondendo por um terço das vendas e quase dois terços dos lucros.
O consumidor mudou o seu comportamento? Mudou. Naturalmente descobriu que é muito mais fácil, prazeroso e rápido comprar higiene e beleza nas farmácias do que nos supermercados. Por mais limpos, modernos, organizados que sejam, os supermercados rescendem carne, enlatados, arroz, feijão, queijos, sucos, peixe… Tem carrinho atormentando e, via de regra, fila no checkout. Nas farmácias, não. Só remédios e higiene e beleza. E gente! Isso mesmo, seres humanos para orientar em caso de dúvida, e não apenas gôndolas…
Mas, tem um detalhe. Um pequeno detalhe. Para que tudo isso se torne realidade é preciso que o consumidor vá até a farmácia comprar um remédio, qualquer remédio. Farmácia que normalmente está no seu caminho de casa para o trabalho, do trabalho para a casa. E o que fazem as redes e as pequenas farmácias? Aderem e adotam o comércio digital, a venda a distância. Pior ainda, vendem o “pãozinho quente remédio” mais barato no digital do que nas lojas, no analógico. Muito pior ainda, treinam e instruem os atendentes das lojas a justificar por que no digital a aspirina é mais barata do que nas lojas: “sabe como é, na loja nós pagamos o aluguel, temos a conservação, a conta de luz, todos os funcionários… e não podemos praticar os mesmos preços do digital…”.
Prometo não retornar ao assunto. Comento pela última vez sobre o PCF. O negócio de verdade das farmácias é a loja. A presença no digital é apenas e simplesmente uma extensão da loja. Uma prestação de serviços, uma gentileza que devem e fazem a seus clientes. Para momentos de dificuldade física de locomoção, proximidade e outras razões, que os impedem de ir até a velha e boa, as novas e revolucionárias farmácias.
Assim, jamais, eu disse jamais, eu repito jamais, o digital deveria concorrer com a loja. Deveria ser complementar. E toda a sua componente de comunicação, relacionamento, estímulo e tudo o mais, na direção de atender o cliente a distância e o estimulá-lo a continuar comprando regularmente na farmácia. “Where is the beef?”, ou melhor, “where is the money?”. Nas farmácias de ruas e de shoppings. No digital, não! No digital, apenas e excepcionalmente atenção, carinho, reciprocidade. Vender mais barato e matar a galinha de ovos de ouro, jamais.