Criador do Papo de Homem fala sobre a masculinidade atual

Guilherme Valadares é fundador da plataforma PapodeHomem, que se dedica à transformação das masculinidades há 12 anos, e possui um braço de pesquisa chamado PdH Insights. A masculinidade vive um momento de extrema confusão e de angústia  a respeito do que significa ser homem hoje, e esta é uma das tendências apresentadas pelo futurista Rohit Barghava na edição mais recente de seu livro “Non Obvious”. Guilherme diz que tanto homens como mulheres estão confusos sobre o que se espera dos homens e das masculinidades hoje. Mas que abordar o masculino na comunicação está simples: basta entender suas dores mais profundas, suas complexidades, e oferecer a eles coisas realmente benéficas. É um tipo de publicidade que enxerga as pessoas, e vai além de clicks, ROI’s etc. Leia os principais trechos da entrevista com ele. 

A plataforma

 O PdH nasceu da solidão, do sentimento de não ser um homem adequado ou suficiente. Existe esse mito da “broderagem” masculina e de que os homens sempre se apoiam, o que não é verdade. É comum vermos isso em certos contextos, como nos esportes, nas festas dos mais jovens e no trabalho. Mas como falamos pouquíssimo das emoções, é raro nos ajudarmos no que realmente importa, porque muitas vezes nem ficamos sabendo quais os maiores medos e dúvidas de nossos amigos. Aparentemente eu não estava sozinho nessa solidão e me conectei com uma dúzia de outros homens por meio de um grupo de emails do Yahoo, todos buscando se ajudar. Esse punhado logo se transformou em algumas centenas, num fórum online mantido por doações e, dois anos depois, surgiu o PdH. Traduzo esse período como uma comunidade de pessoas que buscava cultivar uma vida mais satisfatória e melhores relações. Isso foi parte de nossa história e nos orienta até hoje.

Confusão e Angústia

 Basta olhar pro lado e abrir nossa escuta para vermos o quanto estamos, homens e mulheres, confusos sobre o que se espera dos homens e das masculinidades hoje. A maneira como o masculino tem sido retratado pela mídia parece tomar cada vez mais como ponto de partida a suposta noção de toxicidade inerente dos homens, o que é um tremendo perigo. É como se tivéssemos perdido a fé na masculinidade.

Por isso, meu complemento seria dizer que veremos uma grande e necessária onda com movimentos de transformação dos homens e das masculinidades ganhando mais força, como uma resposta natural e bem-vinda ao feminismo. Como gênero é uma construção relacional — as mudanças do feminino afetam o masculino, e vice-versa —, não há saída. Os homens precisam se engajar, escutar, aprender, estudar, refletir, dialogar entre si e com as mulheres, para que possam sonhar caminhos futuros de existência para suas masculinidades. Eles precisam quebrar a inércia e assumir responsabilidade em serem participativos nessa mudança. Fazemos um monitoramento nacional e internacional pelo PdH Insights. Nos últimos 12 meses, em especial, estamos vendo um crescimento maior do que jamais houve de grupos de homens, projetos de pesquisa e produções de mídia sobre masculinidades. Temos bastante confiança de que isso não é uma onda passageira.

Questões Masculinas

 São várias, a depender de qual homem você é e qual espaço ocupa na sociedade. Mas alguns dos grandes temas são romper o fechamento emocional que habita a maioria de nós, aprendermos a cuidar (de nós mesmos, daqueles que amamos e do meio que habitamos) e dialogar com as demandas apresentadas pelo movimento das mulheres (pra começo de conversa, escutando). Os homens têm muito a ganhar com tudo isso — a transformação da paternidade que já está acontecendo é um exemplo bastante prático disso. Estamos falando de viver com mais escolhas, mais liberdade e menos pressão.

Estereótipos

 Nem todo estereótipo masculino é nocivo. Acredito que vale combater as atitudes problemáticas, mas sem considerar que o masculino como um todo está adoecido. O processo começa reconhecendo que somos parte do problema, assumindo essa responsabilidade. A conversa não é sobre culpa, é sobre o que queremos construir para o nosso futuro, com alegria. Combater os estereótipos passa por escolher não agir do modo como sempre agimos. Reconhecer, refletir, escolher agir de modo diferente e não perpetuar. Por exemplo, parar de contar e rir de piadas sobre pessoas gays é um ótimo começo. A maioria dos homens faz isso por puro hábito e medo de ser visto como o chato da turma se parar de repetir essas besteiras. Mas são piadas desnecessárias, que causam sofrimento em outras pessoas a troco da diversão de outras. Homens que ainda precisam disso estão no passado. E vale ressaltar que é muito comum, em especial, homens de classe social mais alta se considerarem esclarecidos, desconstruídos e bem resolvidos o suficiente. Costuma ser um auto-engano, e me incluo nesse paredão. Menos arrogância e mais humildade, disposição pra experimentar, arriscar passar vergonha, cometer erros e pedir desculpas são boas rotas pra caminharmos nesse processo de mudança.

Machismo no século XXI

É uma ideia profundamente obsoleta, mas ainda com muitos adeptos, pautado em noções de amor, cuidado, compaixão, vulnerabilidade e coragem. Isso vai se tornar uma pauta da grande mídia muito em breve. E o machismo não está na lista dos itens que vamos manter de pé.

Feminismo

 A proposta do feminismo, como a interpreto, é defender mais equidade entre os gêneros. Isso não deveria tornar a vida dos homens mais complicada. Homens se suicidam quase quatro vezes mais do que as mulheres, no Brasil, vivem sete anos a menos e são mais de 95% da população carcerária brasileira, além de possuírem índices alarmantes de ansiedade, depressão, alcoolismo e uso de drogas. Estamos falando de um jeito de existir no mundo que é bastante auto-destrutivo. O feminismo nos oferece a escolha de não agir assim. Convida os homens a se livrarem da pressão de serem os fodões provedores auto-suficientes.

Publicidade

 A publicidade povoa parte significativa de nosso imaginário coletivo. Não assumir essa responsabilidade é fazer publicidade do pior tipo: aquela interessada apenas em vender e totalmente alheia ao mundo. Essa publicidade não enxerga pessoas, só vê consumidores, target, clicks, views e ROI. Um bom caminho para mudarmos é termos mais mulheres, pessoas não heterossexuais e pessoas não brancas liderando agências e times de criação. É bem mais difícil para os homens no poder sacarem o que está acontecendo e voluntariamente abrirem mão de seus espaços de poder.

Marcas

Natura Homem, Gillette, Axe e Grupo Boticário são exemplos de marcas que estão fazendo um esforço digno de nota nessa direção. Não creio que exista rota livre de tropeços, naturalmente. Mais do que as marcas em si, as pessoas que as lideram me parecem cada vez mais acreditar em uma perspectiva de masculinidades mais saudáveis. O caminho para as marcas talvez seja reconhecer que a maior parte delas não sabe mais o que acontecendo com os homens e perdeu a conexão que tinha com eles. Humildade. Buscando ajuda e dedicando tempo a conhecer o território das masculinidades (no plural) com a profundidade devida — há iniciativas maravilhosas a uma googlada de distância. Que as marcas parem de fazer manifestos vazios do “novo homem” ou do “novo masculino” após ler o último report de tendências e assistir dois ou três documentários. Isso não vai gerar as conexões autênticas que tanto buscam.

Abordar o masculino na comunicação está simples. Basta entender as dores mais profundas dos homens, suas complexidades, e oferecer a eles coisas realmente benéficas. O problema é que esse simples se torna difícil quando a comunicação se foca apenas em falar dos homens vencedores, de performance, de conquistas, de piadas. É o próprio vício da comunicação em fugir do que considera chato ou desconfortável que a impede de enxergar as soluções mais poderosas — falo com absoluta confiança, pois temos construído esses cases e podemos apontar inúmeros outros.

Desafios

 Seguir vivo e próximo de outras iniciativas que tenham como prioridade a transformação positiva das masculinidades. Aspiramos, por exemplo, que cada um dos 5.570 municípios do país tenha pelo menos um grupo de homens conectado a essa visão. Queremos levar essa conversa para cada vez mais escolas, meninos e jovens. E temos nos articulado junto a institutos, órgãos públicos e marcas dispostos a sonhar coletivamente conosco. À partir dessa motivação, creio que nosso desafio vai ser descobrir quais os melhores caminhos para manifestar esse e outros objetivos. Nossa meta não é ser a maior empresa, dominar o nicho ou matar a concorrência. Nossa métrica é a quantidade de pessoas que possamos ajudar a se transformar.

Pesquisa

 O PdH Insights se dedica à realização de pesquisas, documentários, consultorias, cursos, palestras e workshops.  Só trabalhamos com marcas e instituições que tenham a aspiração de gerar algum impacto positivo. Nos dedicamos a isso há 12 anos, é o nosso ouro. Dizemos não a quem nos procura querendo apenas gerar insights de negócios ou descobrir como deve ser a próxima embalagem de seu produto. Isso não nos interessa. Oferecemos consultoria estratégica em masculinidades para organizações que desejam transformar sua cultura, mudar o modo como fazem sua publicidade e trazer mais homens para os movimentos internos pela diversidade. Nossos estudos e documentários não são focados apenas no masculino. O mais recente foi feito junto com o Instituto Avon e escutou mais de 9.000 homens e mulheres pelo país. O resultado é um livro e um minidocumentário sobre como dialogar com quem pensa muito diferente de nós, que pode ser baixado aqui. Já atuamos com instituições como ONU Mulheres, Google, Natura, Banco do Brasil e White Martins, nacional e internacionalmente.

Homens Possíveis

 Homens Possíveis é nosso evento anual dedicado à transformação e celebração das mais diversas masculinidades, realizada em conjunto com nossa comunidade. É aberto a homens e mulheres, recebemos pessoas de todo o país.  Discutimos os principais desafios dos homens, hoje. Em essência, o evento busca oferecer narrativas mais construtivas e saudáveis para as masculinidades do futuro.

Homem Possível é um homem comum. Que tenta ser feliz, evita causar sofrimento aos outros e faz seu melhor. Que busca se dar conta dos privilégios que usufrui por ser homem — mesmo que nem sequer use a palavra “privilégios”, que é um termo específico e raro quando você vai conversar com homens fora da bolha mais ativista, por exemplo. É um homem sem receio de assumir responsabilidade por seus erros ou de pedir desculpas quando necessário. É um sujeito que reconhece o quanto o machismo, a homofobia e o racismo são danosos, o quanto matam. Não importa se tenha se dado conta disso recentemente ou se luta contra esses problemas há anos. Ou seja, estamos falando de qualquer pessoa: pode ser o sujeito de 60 anos que passou sua vida na lavoura e se abre pra mudança viável em sua realidade, diante do que os netos e netas apresentam. É também o barbudo desconstruído de Pinheiros, que faz trabalhos manuais, medita e se veste de acordo com as últimas tendências.

Esse homem se reconhece como parte do problema e parte da solução, busca se colocar ativamente no mundo, traduzindo em ações concretas suas tentativas de mudança, mesmo que erre e tenha lá suas confusões. Ele tem suas tensões e contradições, como todos nós. Cada um está num ciclo próprio, levando em conta sua história de vida. Não creio que faça sentido querer obrigar todo mundo a estar no mesmo momento ou humilhar quem tem outra visão de mundo.

O que entendemos por “homem possível” não é uma caixinha pré-moldada de homem sensível que considera os diferentes de si menos evoluídos. Também não é um “novo homem”. Detesto essa expressão, pois ela parece criar ainda mais ansiedade e pressão pra nos encaixarmos em um novo molde, sob risco de sermos julgados.

Ao falar de homem possível, estamos tratando de uma postura diante da vida e das relações. É um homem menos rígido, tenso, fechado. Menos preso à ideia de que deve prover, reproduzir, proteger e dar conta de tudo sozinho pra ser “macho”. É uma pessoa que cultiva amor, compaixão, altruísmo e generosidade, a seu modo. E que não rejeita outras por conta da cor da pele, orientação sexual ou qualquer outro aspecto de identidade que expressem.