Crianças e passarinhos

Anos atrás causou perplexidade, aos que tomaram conhecimento, manifestações de alguns paulistanos incomodados com o fato de os passarinhos cantarem mais cedo. Isso mesmo, quase a exigir das autoridades municipais alguma providência. A denúncia, reclamação ou desvario partiu de um administrador de empresas que reuniu provas.

De repente, os sabiás… Lembram? – “Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá/As aves que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá”, da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. De repente os sabiás começaram a cantar precisamente às 3 da matina, e muitos dos insones anteciparam a manhã e o despertar. Segundo o administrador de empresas, que documentou
a nova realidade, estava muito incomodado porque, ao cantar mais cedo, o sabiá acordava o cachorro dele, e aí, o cachorro ato reflexo ia acordá-lo… E todos se perguntaram: por que os sabiás teriam decidido rever o horário para o início desse fenomenal concerto?

E o biólogo Sandro Von Matter foi atrás. Criou uma sharing research através da internet, conseguiu adesão de 3 mil pesquisadores voluntários, fez um mapeamento do despertar dos sabiás nas diferentes regiões do país e concluiu que o horário dos sabiás cantarem nas grandes cidades é, em verdade, bem mais cedo do que nas pequenas, assim como nos campos e florestas.

Segundo a pesquisa de Sandro constatou, em boa parte das cidades pequenas os sabiás preservam a rotina. Acordam às 6h, dão uma espreguiçada e começam a cantar a partir das 6h30. Conclusão da pesquisa: o sabiá antecipou seu canto de amor para atrair as fêmeas e demarcar território, para antecipar-se e evitar o barulho crescente nas grandes cidades. Concluiu que cumpre melhor sua natureza iniciando seu canto sem a concorrência de carros, motores e buzinas. Assim, é mais facilmente ouvido pelas fêmeas. E consumar-se, enfim, o amor. No veredicto final da pesquisa, Sandro afirma: “Em verdade tudo o que o sabiá fez foi procurar adaptar-se a uma nova realidade. Passou a cantar mais cedo em que nós não estamos fazendo tanto barulho porque dormimos e, assim, seu canto de amor chega às fêmeas…”.

Enquanto isso, um casal, pai dos gêmeos Gabriel e Lucas, no Recreio, Rio de Janeiro, foi notificado porque seus filhos choravam muito e incomodavam os vizinhos. Com dois anos e meio, e ao mesmo tempo, os dois adoeceram. Bem antes da Covid-19. Pneumonia, um; e otite, o outro. Com o desconforto da doença, choravam muito a qualquer hora do dia ou da noite. E aí o casal foi advertido que se seus filhos não parassem de chorar penalidades seriam aplicadas…

Luciana Krull, dentista, mãe dos gêmeos, explicou a O Globo: “É verdade, Lucas e Gabriel não paravam de chorar”. Mas ninguém nem perguntou a razão e muito menos ofereceu ajuda. Depois que o caso veio a público alguns moradores disseram que interfonaram, mas isso nunca aconteceu. Apenas recebemos uma notificação. Uns dias depois de eu contar esse acontecimento na internet é que a síndica entrou em contato. Pediu desculpas, mas disse que estava apenas cumprindo regras. A notificação não foi cancelada nem recebi qualquer pedido de desculpas dos demais condôminos.

É isso, amigos. Será que não existe alguma coisa de muito errada em nossos comportamentos? Será que agora é normal revoltar-se com crianças e passarinhos? Tomara que o novo normal pós Covid-19 seja uma pouco melhor dos atuais normais… Normais?

Francisco Alberto Madia de Souza é consultor de marketing (famadia@madiamm.com.br)