Cruz-credo

Miele, cuja biografia eu tive a alegria de editar, foi um dos maiores contadores de história que o Brasil já conheceu. E, além do talento para narrar, teve a sorte de viver uma vida excepcional. Por isso, dava a impressão que tudo acontecia com ele. O que, de certa forma, não era apenas impressão. As coisas mais incríveis eram corriqueiras no seu dia a dia. Uma vez, por exemplo, trabalhava como redator e foi chamado para criar uma campanha para lançar uma nova linha de batons para a Helena Rubinstein. O briefing sugeria que se usasse basicamente o rádio, que nessa época tinha uma penetração excepcional. Estava criado um problema: como lançar uma linha de novas cores de batom sem mostrá-las? Miele achou moleza. Na verdade, depois que ele encontrou a solução, parecia realmente muito simples. Como tudo na vida, as coisas parecem banais depois que alguém resolve o problema. Os homens levaram milênios até descobrirem a roda. Imagino que no dia seguinte, já tinha alguém diminuindo o valor da ideia, achando que, afinal de contas, não existe nada mais óbvio do que uma coisa redonda girar presa a um eixo.

Pois Miele, acreditando que só os imbecis acham que rádio não tem imagem, criou uma campanha que descrevia as novas cores com absoluta precisão. Por exemplo: “a cor vermelho-dourado da borda das nuvens no entardecer é uma das exclusivas tonalidades da nova linha de batons Helena Rubinstein”. Ou então: “nas frias noites de inverno, com o céu mais claro, é possível se perceber o fascinante tom de prata com que a lua pinta a natureza. Tudo ganha uma suave luminosidade, quase impossível de reproduzir. Ou melhor: só os novos batons Helena Rubinstein conseguem capturar esta magia de cores e matizes”. E ia por aí afora. Cada cor merecia uma explicação, um retrato que permitia a consumidora “ver” os novos tons. Aliás, fazendo um parêntese, melhor do que fosse na TV, que na época ainda era em preto e branco. A coisa foi indo magnificamente bem, até que chegou a vez de explicar a tonalidade amarelo-fogo. Miele criou uma narração completamente poética de um incêndio, descrevendo a beleza encantadora das chamas devorando tudo, fazendo evoluções num balé fantástico. O ouvinte “via” o fogaréu e fazia de imediato a ligação com as tonalidades do batom. Maravilha das maravilhas. Tudo que se espera de uma excepcional peça de propaganda. Arrebatar o consumidor e levá-lo pela mão rumo ao sonho e à fantasia. A campanha foi para o ar com o maior sucesso.

A narração era tão perfeita que os ouvintes acreditavam ter visto as cores e percebido a riqueza de suas tonalidades. No caso da cor vermelha, a tal que usava como gancho o incêndio, essa não deu certo. Pois, eu sei que ninguém vai acreditar, pegou fogo na fábrica da Helena Rubinstein na Rua Namour, transformando o spot numa premonição. O pior de tudo é que muita gente achou que a notícia era falsa. Naquela época pré-internet não havia blogueiros, mas ninguém sentia muita falta, pois havia uma rede de vizinhos e vizinhas que se encarregavam de desmentir a grande imprensa com informações que só eles sabiam. Mesmo com edições extra de noticiários radiofônicos, levou algum tempo para as pessoas acreditarem que não era uma jogada de propaganda. Miele durante algum tempo foi chamado na agência de “boca maldita”. Pois comigo aconteceu uma história quase parecida. Nossa agência atendia a Companhia Internacional de Seguros e eu fui encarregado de apresentar a campanha de lançamento de um seguro de automóveis numa convenção de corretores.

Todas as fotos de todos os leiautes foram feitas com o meu carro, um valente Volkswagen azul-calcinha, naquela época um patrimônio de grande valor. Para impressionar a plateia, fizemos um multivisão com dezenas de projetores de slides, com sonorização de tremer paredes. Os corretores ficaram encantados com a potente voz do Cid Moreira ressoando como se do céu estivesse vindo, mostrando as extraordinárias vantagens do novo seguro, que quase fazia o consumidor desejar ser roubado. Um sucesso. O cliente, o grande Celso da Rocha Miranda, dono da seguradora, se não tivesse alma de cavalheiro inglês, teria chorado no meu ombro. Saímos felizes, de alma lavada e o ego nas alturas. O único problema é que, quando cheguei na rua, descobri que tinham roubado o meu carro.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)