Dói porque Rio
Eu tinha 22 anos, morava em Brasília, tinha nascido em São Paulo e um cliente, talvez por inspiração divina, me incentivou a mudar para o Rio de Janeiro. Estávamos em 1969 e fui morar na Tijuca, perto da Praça Saens Peña. Mais ou menos, naquele tempo, meia hora de Copacabana e Ipanema. Já conhecia o Rio e por ter sido enviado por outro cliente para estudar shopping centers pelo mundo, conhecia Nova York, Paris, Barcelona, Madri, Cannes, Veneza e Roma. Mas o impacto que senti ao viver o dia a dia da cidade foi arrasador. Tive a convicção de que não havia no mundo um lugar como aquele. Não só pela estonteante beleza, mas por tudo: cheiros, cores e movimento. O Rio não cabia em mim. E as mulheres? Como Drummond, eu me perguntava como podia aquilo. Tornei-me carioca, como milhares de outros migrantes, pois no Rio não há origens, a não ser para facilitar o encontro de apelidos. Não virei o “paulista” porque já era gordo e Lula, isso me bastou. Uma coisa me surpreendeu no Rio: depois de algum tempo ninguém mais se surpreendia com nada que acontecia na cidade. E aconteciam coisas inacreditáveis.
Logo depois que eu cheguei, um gaúcho foi eleito governador, assim do nada, por pura sacanagem da população que decidiu aprontar umazinha. Claro que os comentaristas políticos vão afirmar que minha análise é superficial e rasteira, havendo profundas explicações socioculturais para eleição de Brizola. Mas foi de sacanagem, tenho certeza. Não havia ideologia, fastio, crítica ou esperança. Foi pra botar pra fuder, mesmo. De lá para cá, com intervalos morando no exterior, fiz minha vida no Rio. E não me canso de me estarrecer com a imensa capacidade deste povo em fazer coisas que não tem explicação. Não é nem crítica, muitas vezes são coisas positivas e até divertidas, mas tem também muito de suicida. Todo povo gosta de fazer merda, como já dizia Platão em A República. Por isso que o maior perigo para a democracia é a democracia. Mas aqui o pessoal capricha.
Ninguém mais se surpreende que – por exemplo – os dois programas líderes de audiência da tarde, que são ouvidos pelo mesmo público, terem duas temáticas antagônicas. O primeiro é de uma bizarrice total, uma esbórnia radiofônica alucinadamente incorreta, cujo apresentador anuncia músicas oferecendo-as para “os motoqueiros viados” ou para “as bichonas motoristas de táxi”. E dá-lhe música de duplo sentido do tipo “Eu tenho um gato que se chama Tico. Tico mia na sala, Tico mia na cozinha, Tico mia de saudade…” Logo em seguida entra um programa pieguíssimo, cheio de orações para Nossa Senhora, bênçãos e pensamentos positivos. Já é uma contradição. Mas o mais doido é que o apresentador é o mesmo. E todo mundo acha normal. A Prefeitura comprou uns bondes moderníssimos (os VLTs) que atravessam o Centro todo remodelado, trazendo um toque de contemporaneidade e futuro ao velho Centro do Rio.
E daí? Daí que enveloparam o bonde com fotos de banco de imagem e mensagens da Prefeitura “vendendo” o próprio bonde e destruindo a beleza do design original. E, como não bastasse, o veículo é precedido de um motociclista. Igual a Nova York no começo do século passado, quando os trens que atravessavam a cidade precisavam de um cavaleiro anunciando a sua chegada. E ninguém acha isso estranho. As bancas de jornais do Centro estão virando botequins. E você deve estar perguntando onde eu quero chegar. Explico. Chegamos ao máximo, chegamos aos píncaros do contrassenso. O prefeito, cuja administração tem sido boa em muitos aspectos, resolveu botar a boca no trombone e sair criticando a própria cidade! Nas entrevistas para emissoras de rádio e TV do exterior, num inglês perfeito, desanca as providências para a Olimpíada nas áreas de segurança e saúde. Mete o pau sem dó nem piedade, fazendo coro aos policiais que no aeroporto abrem faixas saudando os turistas: “Bem-vindos ao inferno!” Daí eu entendo o grupo de traficantes que há poucos dias revistou uma Van de turistas na subida do Morro do Vidigal dizendo que o objetivo era “acabar com a bagunça”. Só nos falta agradecer o esforço.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor