Estado de sofrência
Stalimir Vieira
O Brasil está triste, abatido, acabrunhado. Poderia dizer-se descornado. Mas não aquele descornado revoltado, ferido no orgulho, homicida latente. Não, é o corno triste, traído em sua convicção de que vivia uma relação estável.
Até outro dia pegava o carrinho, colocava a família e ia passear. Com um sentimento de plena realização dentro do peito. Estava tudo dando certo. O sexo e o trabalho; o trabalho e o sexo. Afinal, um não vive sem o outro. Como o sexo e o Nescau. O sexo e a Coca. O sexo e a Skol. O sexo e o shampoo do Boticário.
Tudo se encaixando, como ocorre na cama, naquele ritmo prazeroso, aquela rotina que nem parece rotina de tão boa de se viver. Quando foi que eu soube, ela e ele se perguntam. Não lembram mais direito. As consequências foram tão marcantes que as datas se perderam.
Primeiro, a tensão indisfarçada, mas sem palavras. Depois, a angústia da dúvida: será mesmo que era mentira aquele gozo explosivo, tudo mentira? A notícia má, enfim. A denúncia, depois a confissão. E os prazeres evaporam.
O Nescau ficou caro. E todo o resto. E aquele passeio entre prateleiras coloridas, que estimulavam a libido a cada gesto de apossar-se dos troféus merecidos e levar para o carrinho, ficou lá abandonado entre lembranças encardidas pela dor. E agora eu voltei a ser feia e você também. Adeus, Boticário. Feios e tristes. Amargos e desesperançados.
Desaprenderam da pobreza nua. Do amor companheiro que lá atrás, um dia, teve sua importância: a roupa lavada no tanque, as panelas escurecidas pela chama desregulada, o cheiro de coco.
Aí, de repente, num dezembro qualquer, enquanto a gente se perguntava se ia chover, começou a se criar uma circunstância, uma percepção que apertava o peito de tanto significado.
Parecia, de verdade, que dava pra ser outra coisa. Da esperança foi um salto para a euforia. Em seguida, a glória da confirmação. Não é que dá pra ser feliz que nem aqueles outros?!
Não é que dá?!
E se apertaram as mãos suadas de aflição gostosa, cada um ainda com um pouco de medo de ser feliz. Não precisa ter medo, alguém grita, libertário: podem, podem, podem! E as Casas Bahia, hein? Paraíso na terra. Obrigado, muito obrigado. Mas já era. E eles se olham e não sabem se olham para as próprias culpas.
Afinal, quem mandou? Pensam nas escolhas. Escolheram-se um dia. E, quando puderam, continuaram escolhendo.
E veio o Escolhido e lhes disse: agora vão poder escolher entre Skol e Brahma, entre Boticário e Natura, entre Casas Bahia e Magazine Luiza.
Sim, senhor! Sim, senhor! Sim, senhor! Uma ordem unida em nome da felicidade. Impossível não ser feliz, impossível ele não ver beleza nela, ela não ver encanto nele.
E, hoje, aí estão com olheiras, cabelos desgrenhados, angústia no olhar, prenúncio de ódio no coração, um ódio macerado pelo medo. Não dá pra lutar sem chão. Não lembram como era antes. Galinhas poedeiras ciscando, qual a graça disso? Só resta sofrer.
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing