“Estamos de frente para o futuro”, vê Florisbal

 

 

Octavio Florisbal aposenta-se de seu cargo de diretor-geral da TV Globo no início do ano que vem, quando passa a integrar o conselho da emissora. Em um bate-papo informal sobre televisão na era digital com profissionais cariocas de mídia, a convite do Grupo de Mídia do Rio de Janeiro, ele citou filósofos, defendeu o modelo de comercialização de mídia brasileiro, destacou a força da TV aberta e da programação linear — que muitos acreditaram que perderiam força —, comentando ainda a lei das cotas. Florisbal está convencido de que vencerá no futuro, independente da plataforma de distribuição da vez, quem for capaz de produzir o melhor conteúdo para suprir as demandas das pessoas. Veja a seguir as suas principais declarações.

Volta para o futuro
No final dos anos 90 havia a crença de que as mídias digitais passariam a ocupar o centro de um sistema midiático. A TV aberta era até então o centro do sistema solar, mas acreditava-se que a chegada da internet mudaria o comportamento de consumo das pessoas. Elas poderiam interagir mais, compartilhar conteúdos, gravar programação — e a programação linear perderia importância e as redes de TV aberta teriam que se reposicionar. Chegou-se a dizer que a TV aberta ia acabar. Na prática, isso não aconteceu. De 2005 para cá, percebemos que alguns impactos tiveram importância enorme no contexto de mídia e mudaram hábitos de consumo de mídia, mas não retiraram a TV aberta ou o vídeo profissional do centro do sistema. O impacto causado pelo digital trouxe uma série de facilidades, como a interatividade, que vale para praticamente todas as plataformas: TV aberta e fechada, internet, jornais, revistas, rádio. Trouxe uma mudança importante para a TV aberta porque tem qualidade de vídeo fantástica, permite a presença do conteúdo de TV em qualquer lugar — em casa, no smartphone, no iPad. As novas telas – de 40, 50, 60 polegadas – trazem prazer revigorado de assistir televisão. A TV voltou a ocupar o espaço na sala, pois estava meio desaparecida. O sistema digital está sendo muito importante para a TV aberta.

Centro das atenções
Acreditava-se que o conteúdo individual e amador suplantaria o profissional. Isso não aconteceu: cada vez mais a internet usa vídeo. O consumo de vídeos na web é exponencial e o que mais se consome são vídeos profissionais: das redes de TV, das produtoras. Grandes players mundiais, como Google e Microsoft, estão buscando conteúdos profissionais para distribuir. Essa valorização do conteúdo profissional em vídeo é outro grande impacto. Ajudou muito as TVs aberta e fechada, pois somos os grandes produtores de conteúdo de vídeo profissional e também estamos em todas as outras plataformas.

Líquido e espumante
Há outros aspectos de caráter mais sociológico e psicológico acerca do mundo digital e que estão ligados à TV aberta, principalmente no Brasil. Existem alguns filósofos como o Zygmunt Bauman e o Peter Sloterdijk que têm estudado o comportamento de consumo de mídia no mundo. O Bauman entende que a sociedade de hoje vive no mundo líquido, em que as coisas acontecem com muita velocidade e são muito perecíveis. Há uma fluidez e mobilidade muito grandes. O Sloterdijk fala do mundo das espumas, das bolinhas ligadas umas as outras. É o mundo em que se têm vários pontos de vista sobre o mesmo assunto, tudo está interligado e há muita conectividade. Esse mundo líquido e espumoso trouxe uma mudança e de certa forma um paradoxo com esta modernidade. Para nós o primeiro grande desafio é poder acompanhar a quantidade crescente de informações e conteúdos que acontece todos os dias, no mundo todo. Em segundo lugar, é preciso compreender tudo isso que acontece ao mesmo tempo. Isso também tem levado pessoas a certo isolamento, principalmente os grandes usuários de internet. Esse sistema todo traz certa insegurança para as pessoas. Os filósofos concluíram que hoje o que precisamos é ter um porto seguro, uma ancoragem e um sentimento de pertencimento. Há vários exemplos disso. As religiões, que hoje estão crescendo muito, são grupos em que as pessoas se unem em busca de um porto. Os shoppings centers idem. E o mais abrangente ponto de encontro é a TV aberta, no mundo todo. São cinco bilhões de pessoas assistindo TV aberta e fechada. Aqui são 180 milhões que assistem TV todos os dias. É um ponto de agregação social em que há certo pertencimento, em que as pessoas — e esse é um paradoxo — sabem exatamente o que vai acontecer: tem a novela, o jornal, o futebol, um show. Isso lhes dá segurança e previsibilidade.

Conteúdo espalhado
A qualidade dos conteúdos e as novas tecnologias fizeram com que, principalmente a TV aberta, voltasse a ocupar um espaço muito importante no sistema midiático. Os conteúdos estão muito refletidos nas outras plataformas: os jornais e revistas falam de TV e têm colunas especializadas sobre o assunto, a internet com todos seus portais, sites e redes sociais repercutem os conteúdos. O mundo está mais integrado e interagindo. O conteúdo profissional das TVs passam a ter uma repercussão e ressonância nas outras plataformas, respeitando a individualidade de cada uma delas. Portanto, a TV aberta, que estava ameaçada há 15 anos, voltou a ter uma importância crescente no consumo de mídia. Com as novas tecnologias, a segunda tela estará sintonizada com a tela principal, complementando seu conteúdo.  É cada vez maior a presença de vídeo nos smartphones. Nos EUA mais de 60% do acesso à internet é feito via mobile. Aqui já está quase chegando a 50%. Se imaginarmos que nos próximos cinco anos teremos 150 milhões de smartphones eu diria que as plataformas que têm conteúdo de vídeo importante estarão muito presentes no celular. É uma mídia de massa extraordinária fora do lar, pois são as mesmas pessoas. Vamos acompanhar as pessoas onde elas estiverem. Há a possibilidade de um consumo sincronizado — alguns tipos de programação podem ser visto via celular, outros em aplicativos, outros terão conteúdos específicos.

Hegemonia linear
Outra grande discussão que ocorreu no passado e não se voltou à ela: a programação linear, em real time, perde importância para a programação on demand. Há 20 anos, quando apareceu o TiVo lá nos EUA, que dava a possibilidade de montar a programação de acordo com seu gosto, cortando os comerciais. Passaram-se 20 anos e existem ainda o TiVo, o DVR, segundo a Painel 3 Telas da Nielsen, sabe-se que de 150 horas consumidas por mês de TV aberta e fechada, 135 horas são de TV conteúdo linear, real time. Cerca de dez a 12 horas são de programação gravada ou de vídeo on demand, do tipo Hulu e Netflix. No fundo as pessoas quando chegam em casa não querem ter todo esse trabalho que a gente imaginava, de organizar sua programação, editar, fazer. Querem relaxar e assistir TV. É uma questão interessante: a programação linear continua muito importante. Começamos a ter vídeo on demand no Brasil. Grandes portais como o Google montando o Google TV, a Apple TV, que nada mais é que a conjugação em um mesmo aparelho de todas as possibilidades — vídeo on demand, games, programação aberta, navegação na internet —, conecta todas as plataformas. O “novo aparelho de TV”, que não sei qual nome terá, conjugará todas as plataformas. O que será interessante é como isso impactará o consumo de mídia — como serão gastas as cerca de cinco horas por dia que as pessoas dedicam a consumir diferentes mídias. Aposto que prevalecerá quem tiver o melhor conteúdo, atender melhor os anseios da audiência, chegar na frente com mais qualidade e pertinência. Imagino que a TV aberta — e talvez a fechada e a internet — terá maiores condições de atender melhor esse consumidor.

SmartTV
A TV conectada — ou SmartTV —, que resulta de parcerias do Google com a LG, da Apple com a Samsung e assim por diante, com associação a provedores de conteúdo, sem dúvida vai crescer. Mas se o exemplo americano prevalecer por aqui, sempre representará um percentual menor. Pelo menos 80% do tempo será dedicado ao conteúdo linear e o restante para vídeo on demand. Para tornar tudo mais interessante, há novos equipamentos e câmeras com 4k e 8k — resoluções quatro e oito vezes maiores que a alta definição. A NHK do Japão lançará o 8k para ser consumido nas residências em 2020 e já trabalha desde agora. No Carnaval do ano que vem, virão fazer uma experiência conosco de gravar o Carnaval do Rio em 8k para servir de demonstração. Temos que estar atentos a essas tecnologias. Nós da Rede Globo entendemos que, no lugar de entrar no lineup de alguma SmartTV, queremos andar com nossas próprias pernas. Recebemos um convite do Google, agradecemos e decidimos fazer um teste com um vídeo on demand nosso, o TV Globo Mais. Nele, ofereceremos todo o nosso conteúdo com um pequeno delay para não concorrer com o que está no ar. O teste está muito bem e devemos lançar no ano que vem. As pessoas terão que ter assinatura, mas será um preço módico. E também temos hoje o que chamamos de Rede Globo na internet — queremos ser o portal de maior conteúdo da internet, com imensas oportunidades de comercialização. Já temos três milhões de usuários.

TV paga cresce
A TV paga cresce muito no Brasil por conta da economia e a massa salarial. Vamos fechar este ano com 16 milhões de lares com TV por assinatura, em três anos deve chegar a 25 milhões — 50% dos lares brasileiros. O sistema de banda larga que o governo tem estimulado também deve crescer. Tanto a TV paga quanto a internet passarão a ser mídias de massa junto com a TV aberta e o rádio. Outra grande aposta no futuro em mídia de massa é o mobile. Não é difícil fazer o conteúdo chegar aos smartphones. Difícil é o modelo de negócio que pague essa conta e deixe algum resultado. Mas vamos acabar descobrindo.

Publicidade em alta
Vendo vários institutos que trabalham com previsões como Deloitte e Zenith, o que se observa é que há um crescimento na audiência mundial de televisão, contrariamente ao que se imaginava. Há uma estabilidade nos países desenvolvidos e grande crescimento nos países em desenvolvimento como China, Índia, Brasil e Rússia. A TV aberta tem crescido em participação no investimento publicitário. Tinha uma participação mundial de 37%, 38% há uns cinco anos e deve fechar com 42%, segundo a Zenith, o que mostra a força do segmento. Fala-se que daqui a cinco anos a China será a maior potência mundial. Os países em desenvolvimento vão dominar a economia mundial e isso vai ter grande impacto no consumo de mídia. Não é à toa que todos os grandes grupos multinacionais de agências e anunciantes estão cada vez mais interessados nos países em desenvolvimento.

Lei das cotas
A lei que acabou de ser aprovada (12.485) que cria as cotas de conteúdo nacional para os canais fechados, é gradual: no primeiro ano é uma hora, no horário nobre, depois duas, depois três. Isso vai movimentar o setor de produção de audiovisual independente, que tem que produzir esses conteúdos. Pessoalmente acho que impor essas quantidades dessa forma será difícil. Com a quantidade de canais existentes, não será difícil ter conteúdo de qualidade para essa quantidade de horas. Eu seria mais cauteloso na quantidade de horas. Acho que ajudará o mercado audiovisual e gerará novos empregos. Com o crescimento da classe C aumenta a importância de se oferecer conteúdos nacionais. Um capítulo de horário nobre na TV Globo custa R$ 800 mil. Um programa de TV paga custa R$ 30 mil. Será preciso realizar projetos modestos ou aumentar a verba para ter qualidade de produção crescente. Com o aumento de volume de assinantes, ficará mais fácil. No nosso caso, temos um princípio estratégico de, na nossa grade, de que não abrimos mão: telenovelas são produções nossas, bem como jornalismo, esportes e programas de variedades. Em séries, procuramos ter ao longo do ano duas ou três coproduções com produções independentes como Conspiração, 02, Mixer e tantas outras. Renderam bons frutos. Conquistamos o prêmio Emmy Internacional com “A mulher invisível” — coprodução com a Conspiração — e a novela “O astro”. Somos a segunda rede no mundo depois da BBC com maior número de finalistas na premiação.

Mercados regionais
Sentimos grande potencial de crescimento no sistema digital, que cobre cerca de 50% dos domicílios com TV. Faltam os outros 50%, em 5.500 municípios. Novas exibidoras serão lançadas, muitas repetidoras serão transformadas em micro geradoras digitais. Na Rede Globo temos um grande projeto de, em poucos anos, levar o sinal digital a todos. Nossa meta para a Copa de 2014 é que todas as cidades acima de 50 mil habitantes terão nosso sinal digital. Acreditamos muito no crescimento da economia, do mercado de consumo e do mercado de publicidade regional e local. A economia brasileira cresce nas regiões interiores dos estados, cada vez mais, o que leva emprego, massa salarial e consumo. Quando comecei a trabalhar em mídia o Nordeste era o patinho feio. Hoje é o segundo mercado consumidor de produtos de massa no Brasil. São 80 milhões de habitantes. Esses mercados regionais tendem a crescer muito com consumo e mídia. É um desafio para nós, profissionais de mídia, como explorar adequadamente esses mercados, pois não há tantas informações a respeito deles. Teremos que ter mais dados sobre comportamento de consumo de mídia nas cidades médias e pequenas, pesquisas antropológicas. Os anunciantes demandarão isso. A comunicação regional terá importância crescente. O grande mercado vai se deslocar para os interiores. Sempre se falou muito que o Brasil é o país do futuro. Hoje, estamos de frente para o futuro. Seremos a quarta economia e o quarto mercado publicitário mundial em cinco anos. Em TV aberta somos o terceiro maior mercado global.

Regulamentação
Com o interesse dos grupos internacionais no país, é natural que o conteúdo estrangeiro se faça muito presente. Nos canais fechados há séries americanas. No Google, Yahoo!, Microsoft, os conteúdos estrangeiros são muito fortes. Temos que estar atentos: há a tendência de globalização de anunciantes, agências, institutos, fornecedores e conteúdos internacionais disputando a preferência dos consumidores nacionais. Temos que estar atentos, nossas entidades precisam defender o nosso modelo, que acho que é o mais adequado, principalmente para os profissionais de mídia, que têm oportunidade de fazer um trabalho com todos os canais de comunicação, integrados ao planejamento e à criação. Temos que defender nossa regulamentação, porque lá fora o modelo é diferente.  O futuro chegou. Nosso mercado de comunicação será muito forte, com grandes oportunidades. Vamos ser competentes para aproveitá-lo ao máximo.