Ética, dados e metas
Costumo dizer que ninguém contrata pesquisa quando está tudo bem. Normalmente, a consulta é feita para verificar o tamanho do estrago, provocado por alguma besteira involuntária ou deliberada. Acontece coisa parecida quando se percebe uma grande mobilização do mercado no sentido de corrigir distorções éticas nos negócios.
Ela ocorre sempre que uma sucessão histórica de abusos compromete a imagem da atividade e começa a ter reflexos no faturamento. Foi assim durante o furacão do compliance e não está sendo diferente na questão relativa à proteção dos dados. São sempre reações a uma situação próxima do descalabro moral. E então surgem manuais para ensinar o bê-á-bá da moralidade corporativa. A malversação no uso de dados é antiga e crônica, a ponto de se tornar banal, inclusive para suas vítimas.
É ridículo que apenas em meados do ano passado tenha sido disponibilizado aos brasileiros pela Anatel o sistema “Não perturbe”, que permite o bloqueio de chamadas comerciais não-autorizadas. E que só agora, em janeiro de 2020, os bancos tenham criado uma autorregulação que dá aos incomodados o direito de impedir que companhias de crédito insistam em ligar para recém-aposentados, por exemplo, a partir de dados obtidos sabe-se lá como.
Milhares de subempregados em mesas de call centers passam o dia atormentando os outros, a fim de compor um salariozinho de sobrevivência. Tudo em nome das tais metas. A coisa se converteu em escândalo e começou a manchar a imagem de marcas que são vendidas por terceirizados. Daí, como sempre ocorre, setores se mobilizaram em nome de ética (!). Quando comecei a trabalhar, usei uma parte do meu primeiro salário para assinar uma revista semanal. Pouco tempo depois, comecei a receber toda sorte de correspondências, oferecendo os mais variados serviços, de cartão de crédito a consórcio.
Passados alguns anos, quando fiz o meu primeiro cartão de crédito, passei a receber correspondência frequente, oferecendo assinaturas de revistas. Ou seja, faz muito tempo que nossos dados vagam de mão em mão, negociados entre segmentos diversos, sem o menor escrúpulo.
Com a popularização do telefone, a abordagem passou a ser mais desavergonhada e substituiu os redatores de malas-diretas por vendedores de viva voz. Se antes bastava amarrotar a papelada e jogar no lixo, passamos a viver o constrangimento de desencorajar a insistência de pobres anônimos.
Veio a internet, sua meteórica evolução e o assalto à nossa intimidade virou uma mina de ouro. Tudo com a cumplicidade do mercado e a complacência do poder público. Da mesma forma que acredito que os manuais de compliance atenuam, mas não eliminam os maus hábitos, entendo que a Lei Geral da Proteção de Dados deva causar uma certa intimidação na largada, mas com o tempo interpretações jurídicas diversas revelarão suas frestas.
É verdade que algumas empresas já fazem do respeito à proteção de dados, bandeira de marketing, como outras, em ocasiões recentes, fizeram a mesma coisa com relação ao compliance. A maioria, no entanto, vai ter de se virar para tentar atender à volúpia de resultados sem pisar na bola.
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com)