O Cannes Lions foi o evento que posicionou a propaganda brasileira no mapa mundi, e gerou enorme curiosidade em torno daqueles “Golden Boys” da criação, que se assemelhavam a artistas (e em muitos casos eram). De alguma forma, os criativos brasileiros sempre tiveram relação mais apaixonada do que a média com a publicidade – e com a competição por Leões. “Cannes ajudou a construir a publicidade brasileira particularmente entre o início dos anos 1970 e o fim dos anos 1980, quando o festival era só de filmes, o número de Leões pequeno e, por consequência, as agências e os profissionais premiados acabavam sendo valorizados, ganhando reconhecimento no Brasil e no mundo”, diz Washington Olivetto, hoje consultor da McCann em Londres e faz tempo “aposentado” dos Leões.

Luiz Sanches, sócio e diretor-geral de criação da Almap- BBDO, agência do Brasil mais premiada em Cannes em todos os tempos, reconhece que o festival é balizador de qualidade criativa, efetividade e inovação, que a ele o Brasil deve grande parte da sua reputação. “Cannes é como a Copa do Mundo, e o Brasil é uma seleção que já foi muitas vezes vencedora, é uma das grandes potências criativas”. Segundo ele, premiações no festival sempre agregaram muito aos profissionais brasileiros, especialmente no cenário globalizado. A presença do Brasil no festival gerou uma via de mão dupla, conforme descreve Felipe Luchi, sócio e CCO da Lew’LaraTBWA: por um lado os profissionais brasileiros conseguiram visibilidade mundial via festival e as grandes redes e seus clientes passaram a entender o mercado brasileiro através dos trabalhos premiados com Leões. Ao mesmo tempo, a produção brasileira passou a seguir os níveis de qualidade globais e a publicidade mundial passou a comprar os talentos brasileiros. “Não são poucos os criativos brasileiros espalhados pelo mundo aplicando o nosso jeito de fazer publicidade às marcas globais”, comenta Luchi.

Fernando Musa, presidente do Grupo Ogilvy Brasil, a terceira agência mais premiada em Cannes na história da propaganda brasileira, fala que o festival teve e tem um papel importante, mas não exclusivo, na construção do mercado e dos profissionais. “Cannes é a grande referência de festival da nossa indústria e é um grande parâmetro da criatividade que todo o mercado aporta para as marcas. Ajuda a espelhar e refletir a evolução do mercado como um todo. Sob o ponto de vista pessoal ninguém volta de Cannes igual. É uma semana que te ajuda a questionar, a querer mais, a buscar novas referências e te confronta com uma realidade diferente da sua no dia a dia”, diz Musa.

Para ele, os Leões do passado, além de trazerem reconhecimento para profissionais brasileiros, deram a autoestima necessária para o mercado brasileiro se desenvolver e ser o que é. “Os Leões nos fizeram acreditar que o Brasil na publicidade joga na ‘a league’, assim como nossos profissionais”, comenta.

O valor de um Leão
Os mesmos Leões que deram notoriedade global à publicidade brasileira e de outros países ao longo do tempo, se tornaram motor de uma máquina financeira de força massiva, o que levou, inevitavelmente, ao questionamento geral sobre o verdadeiro valor de um Leão. “Ganhar um Leão costumava ser um feito estratosférico, para poucos. Sobravam motivos de celebração, enquanto o tradicional complexo de vira-lata se desfazia entre elogios e aumentos salariais”, define Adilson Xavier, ele mesmo ganhador de alguns Leões nos tempos de criativo da Giovanni (depois Giovanni+FCB). “Como numa Copa do Mundo, campeonato frequentemente comparado ao Festival de Cannes pelo seu tamanho e importância, os criativos brasileiros provaram ter ‘ginga de corpo’ para driblar a falta de verba de produção e brindavam a plateia com jogadas surpreendentes”. Ele acredita que o Leão não vale hoje o que valia naquelas primeiras décadas, quando a disputa era mais qualitativa que quantitativa. Foi o preço do crescimento e da transformação em um imenso negócio, de proporções estratosféricas, ao ponto de, este ano, estar apresentando uma versão mais enxuta e menos pretensiosa de si mesmo, na tentativa de não perder valor e relevância.

Para Olivetto, o valor de um Leão há 30, 40 anos era enorme e muito maior do que o que passou a ter a partir da multiplicação de categorias e distribuição mais farta de prêmios, especialmente na última década. Eduardo Fischer, CEO da Fischer e profissional que conquistou vários Leões nas diversas fases da sua agência, fala que os Leões perderam sua importância a partir do momento em que o mundo da publicidade passou a reconhecer que muitos dos trabalhos premiados ao longo do tempo – especialmente naqueles primeiros anos – não contribuíram de fato para o crescimento dos negócios dos clientes que representavam.

“Não adiantava nada levar um GP que não gerava vendas. Agências extraordinariamente criativas não necessariamente geravam resultados extraordinários para seus clientes. Acredito que o festival foi se transformando aos poucos para mudar isso, abandonando os trabalhos criativos ou fantasmas. De uns anos para cá, começou a focar mais em negócios, e a ser um lugar de marketing de relacionamento, de balizador para comunicação de resultados”, observa Fischer. 
De certa forma, Leões como o Creative Effectiveness (área criada em 2011) vieram como resposta a essa demanda – e este ano, vale lembrar que o GP nessa categoria passa a valer 35 pontos no lugar de 12. Outra medida foi separar de maneira mais categórica os trabalhos realizados voluntariamente para ONGs e instituições sem fins lucrativos daqueles feitos para efetivamente vender produtos e serviços propriamente ditos.

Para a geração mais recente da publicidade, os Leões seguem interessantes, desejados, balizadores de excelência. “Os Leões continuam tendo valor enorme, a celebração e o reconhecimento de trabalhos bem feitos tem um peso gigantesco. Talvez eu seja a pessoa que mais ganhou Leões no país, tenho 167, mas considero cada um deles. Hoje mais Leões são dados porque há mais categorias, a propaganda mudou. E as fichas técnicas também mudaram, estão maiores. Se antes eram duplas, hoje é preciso uma equipe gigantesca para colocar um trabalho em pé. Há outras disciplinas envolvidas”, comenta Luiz Sanches.

Paulo Coelho, CCO da DM9DDB, a segunda colocada na lista das mais premiadas em Cannes, fala que o valor de um Leão segue exatamente igual ao de décadas atrás. “Antigamente, ter uma sacada de filme já era o suficiente. O negócio atualmente é muito mais estratégico, as ideias ficaram mais complexas e o Leão passou a ser importante para ao cliente também, o que não ocorria anteriormente. Cannes era um festival de publicitários, hoje é um festival de publicitários, produtoras e clientes”, destaca Coelho, que este ano será jurado de Direct. Segundo ele, o festival de Cannes sempre será a régua máxima, a maior métrica do mercado.

Luchi, da Lew’LaraTBWA, concorda com Coelho na medida em que acredita que hoje o ofício se tornou mais complexo. “O Leão continua tendo um valor imenso. Primeiro porque segue sendo muito difícil ganhar um. Algumas pessoas podem dizer que hoje existem muitas categorias e, por isso, há um excesso de Leões na ‘praça’. Mas a realidade é que hoje também existem muito mais modalidades de empresas e profissionais que estão disputando esses Leões. Portanto, segue sendo muito duro e tendo muito valor ganhar um Leão que seja”, acredita. Para ele, não tem como estar fora de Cannes. “Você pode mentir para si mesmo, para seus clientes e para seus prospects dizendo que não dá bola para o festival. Mas o Cannes Lions não falha: tudo o que é relevante e que definirá o futuro daquilo que nós, publicitários, fazemos, ganha um Leão”, diz Luchi.

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Dificuldade
Adriano Matos, VP de criação da Grey, fala que se por um lado ficou mais “fácil” ganhar Leões em maior quantidade, porque aumentou a oferta de troféus e categorias, aumentou muito a dificuldade de colocar um projeto incrível no ar. “Um case real e bem construído em 2018 muitas vezes precisa conjugar uma série de disciplinas, tecnologia, BI, PR, conteúdo. Precisa ter um storytelling eloquente e resultados de negócios consistentes. Pode levar meses para ficar pronto. Criar peças relevantes, integradas e poderosas é, portanto, uma tarefa absolutamente desafiadora nos dias de hoje”, comenta.

Guilherme Jahara, CCO da F.biz, fala que Leões não bastam, e nunca bastaram, para balizar o mercado. Apenas premiar não é o suficiente. O festival precisa ajudar a nortear e discutir o mercado – o que ele de fato começou a fazer, a partir dos anos 1990, na gestão do lendário Roger Hatchuel, que implantou o conceito “Less Beach, more Work”, que marcou os trabalhos dali em diante.

Visionário, Hatchuel percebeu que, para fazer o evento crescer, era preciso ampliá-lo, criar mais atrativos e, depois que a internet entrou em cena, assistir às long e short lists no escurinho dos auditórios deixou de ser um grande atrativo.

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A cada ano, portanto, Cannes procura se superar na profundidade de discussões. E ampliar o olhar e as perspectivas o máximo possível. “Há outras questões no ar. Há outros olhares. Cannes não pode ficar só na nossa indústria. Os limites já têm se expandido”, observa Jahara. Os Leões seguem, sim, importantes, mas hoje o pacote completo se tornou essencial a quem atua na indústria da comunicação: ele inclui tendências, negócios, tecnologia e novos caminhos para as marcas, produtos e serviços. “O valor de um Leão sempre é muito grande, é a tradução do reconhecimento do nosso trabalho. Quem não quer? Mas uma coisa é ter um trabalho bacana, incrível e disputar seu reconhecimento domando Leões. Outra coisa é criar trabalhos basicamente para alimentá-los”, conclui Hugo Rodrigues, chairman e CEO da WMcCann.

Roberto Vilhena, diretor de criação da J. Walter Thompson, afirma que Cannes talvez não seja o mais importante festival, mas, com certeza, o de maior visibilidade internacional para a indústria como um todo. Em um negócio movido a capital intelectual, um fórum de ideias e competição de insights como Cannes se mantém importante. “Acredito termos momentos competitivos como Cannes. Claro que é desse equilíbrio entre manufatura de produto e de linguagem que, penso, nascem as grandes marcas. Afinal, trabalhamos para geração de negócio. Mas como gestores do lado criativo do negócio. Cannes é essencial para isso”, diz Vilhena.

Fernando Musa, da Ogilvy, destaca que “Leão é Leão”, sem questionar eventuais perdas de importância ao longo do tempo. Para ele, com todas as transformações, Cannes ganhou tanto em tamanho quanto em importância.

“Há mais gente da indústria, mais clientes, mais veículos, e é ainda o grande momento onde todos se encontram, onde a gente se olha um pouco como indústria, repensa o futuro e questiona. Talvez não tenha lugar mais emblemático para nos sentirmos, como diria David Ogilvy, ‘divinamente descontentes’ com o nosso trabalho”, reforça Musa.

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