Filme sobre criatividade nascendo de escravidão e tragédias revolta profissionais

Um vídeo de 52 segundos traça paralelos entre períodos históricos para mostrar que a criatividade aflora em momentos de crises. O primeiro elo da narrativa visual coloca em perspectiva épocas como a Inquisição e o Renascimento, iniciando o raciocínio de que um não existiria sem o outro.

Em seguida, são feitas pontes entre a escravidão nos Estados Unidos e o Blues, a Primeira Guerra Mundial e Bauhaus, as mulheres excluídas da Ciência nos anos 50 e Rosalind Franklin descobrindo o DNA, a Ditadura e a Tropicália, o Ku Klux Klan e o Movimento Black Power, entre outros exemplos, até chegar aos dias de hoje, com a Covid-19 e o futuro a ser criado a partir da pandemia. “Crie”, finaliza a peça.

O filme foi criado pela Wieden+Kennedy São Paulo para o Festival Clube de Criação 2021, que tem o conceito “Na crise, crie”. Publicado em plataformas digitais na tarde da última quarta-feira (1º), o material foi retirado do ar poucas horas depois.

O vídeo gerou muitas críticas em função da abordagem e dos paralelos traçados, principalmente os relacionados a períodos perversos da humanidade, como a escravidão nos Estados Unidos, e os que citam movimentos de resistência e sobrevivência, como o Black Power.

Dezenas de profissionais da publicidade e do marketing compartilharam relatos indignados em grupos de WhatsApp e de Facebook, além das timelines das plataformas Twitter, Instagram e LinkedIn.

No centro do debate não estava a criatividade ou o craft do projeto, mas seu conceito e adequação a sociedade atual, que discute cada vez mais temas como racismo estrutural, direitos sociais, diversidade e inclusão em todos os âmbitos – e cobra posicionamentos consistentes das empresas e personalidades públicas.

Em um dos posts no LinkedIn, Pedro Cruz, da Soko, chama atenção para a importância da formação e composição dos times. “A crise instaurada na indústria da comunicação e do marketing hoje só reforça o que venho discutindo por aqui: a necessidade cada vez maior e urgente de incluirmos em nossos times pessoas diversas com repertórios culturais necessários para não cometermos erros como o da Wieden + Kennedy para o Festival do Clube de Criação de São Paulo”, escreveu.

Ele fala ainda em usar a criatividade a serviço das urgências coletivas. Em sua análise, fazer isso é entender o potencial enquanto profissionais da indústria para gerar mais valor e dignidade para grupos e comunidades. “Somos nós que pautamos a cultura. Somos nós os responsáveis pelo o que as futuras gerações irão entender como sociedade. E se deixarmos dívidas, seremos cobrados por tal”, pontuou.

Outro post bastante compartilhado foi o de Anna Castanha, sócia-proprietária na Fagos Diversidade, Inclusão e Comunicação. “Segundo o mote do vídeo, os momentos de crise são aqueles que favorecem a criatividade. De certa forma, isso é verdade. Mas isso não quer dizer que certos movimentos culturais e grandes descobertas só foram possíveis graças a forças contrárias, como tortura, racismo, feminicídio e fascismo”, escreveu. “Nessa mesma linha de raciocínio, devemos agradecer a Marco Antônio, ex-marido da Maria da Penha, por termos desde 2015 uma lei que protege as mulheres de homens agressores. Afinal, se ele não tivesse dado um tiro e tentado eletrocutar Maria da Penha, a lei não existiria”, refletiu.

Também no LinkedIn, Ian Black, CEO da New Vegas, fala que o prejuízo do vídeo ficará com “todas as pessoas pretas que vão protestar publicamente e serão silenciosamente queimadas” pela masculinidade branca, “que relativiza os horrores da escravidão, da guerra e da ditadura, classificando-as como crises e apresentando movimentos artísticos e políticos complexos como consequência compensatória”. “Só faltou a “crise” do holocausto, que em “compensação” tornou “possível” o estado de Israel. E para a crise que vitimou 600 mil mortos apenas no Brasil, qual seria a compensação: a cultura das lives, a explosão dos serviços de streaming?”, questiona.

Ele ainda alerta como o episódio implica no medo das pessoas serem prejudicadas profissionalmente. “Quem for da cor preta e ousar reclamar, conscientizem-se de que sua indignação não será recebida como uma demanda por respeito, mas como um radicalismo incômodo, a desculpa perfeita para que portas sejam fechadas com um desprezo conveniente. […] E por trás disso está todo um trabalho emocional inevitável, invisível e injusto: ter que parar tudo o que estamos fazendo para ter que denunciar e problematizar, mesmo que, invariavelmente, isso nos feche portas e diminua nossas chances de trabalho. Enquanto isso, para essas pessoas, as portas continuam escancaradas e os tapetes vermelhos estendidos”, critica.

Compartilhando o post de Ian, a executiva Samantha Almeida, head do Twitter Next, avaliou que “a crise é ética”. “Como repito sempre: olhem a ficha técnica. A resposta para a cegueira coletiva está nela”, argumentou.

Em texto na mesma plataforma, Alan de Sá, da Isobar, questiona se não houve alguém nas equipes para sinalizar os erros, e diz que associar criatividade a desgraças humanitárias “é o ápice da falta de caráter”. “Não é falta de conhecimento, até porque, conheço vocês e sei que fundos e acessos não são o problema. […] O blues não foi uma “resposta criativa” à escravidão de africanos nos Estados Unidos. O movimento dos Panteras Negras não é um time de criativos disruptivos”, escreveu.

Ele prossegue nos exemplos e reforça que a luta de grupos marginalizados é histórica por motivos de sobrevivência. “O que seu filme me diz é que, se não fosse o massacre de Tulsa, não existiria Angela Davis, Assata Shakur, Huey Newton e tantas outras personalidades negras que lutaram, literalmente, pelo direito de andar nas ruas. Que foram precisos 11 milhões de negros escravizados para as Américas pra alguém ter um “insight” e criar um gênero musical”, afirma.

Pedro Tourinho, fundador da MAP e sócio da Soko, classificou o vídeo como “prova viva e exuberante da total falta de empatia, educação e bom senso”. “O desânimo que dá pensar por quantas pessoas essa ideia passou antes de ser aprovada”, reflete.

Filme apagado
Diante da forte repercussão, agência e cliente retiraram o vídeo do ar e se desculparam em uma nota conjunta. “Hoje, o Clube de Criação e a Wieden+Kennedy divulgaram um novo filme em suas redes. Tão logo as reações negativas surgiram, entendemos o quão imprópria a mensagem é – por isso decidimos retirá-lo imediatamente do ar. O Clube de Criação e a Wieden+Kennedy, em nome de todos os profissionais envolvidos, pedem as mais sinceras desculpas”, informa o texto publicado nas plataformas de cada empresa.

Após os pedidos de desculpas, as manifestações continuaram apontando a profundidade do problema, observando a ausência de reflexão antes da campanha ir ao ar. A maioria das análises aponta como gargalos a possível falta de diversidade nos times e equipes mal preparadas para a complexidade da sociedade atual.

Muitos comentários perguntam justamente como o material foi construído, manuseado e aprovado sem a percepção dos pontos criticados. “É inacreditável mesmo que ninguém avisou antes de sair – e se avisou, que ninguém escutou. A bolha publicitária é uma desgraça de tão míope”, escreveu um profissional de marketing. “Nem se fosse 1970 isso seria aceitável. A insensibilidade foi tamanha que fica difícil descrever. A sensação que dá é que vocês só não mencionaram holocausto por falta de tempo, porque a bola tava quicando. Foda ver isso se repetindo mais uma vez no meio publicitário. Escravidão como crise? É a puta que pariu”, postou outro.

Ian Black foi um dos profissionais que respondeu diretamente o posicionamento da agência. Para ele, esta “foi a campanha publicitária mais desrespeitosa com a memória e a herança cultural da população negra originária da diáspora”. “A manifestação de vocês aqui é diametralmente oposta a dimensão da ignorância e do desrespeito apresentados no infame vídeo que continua a circular entre profissionais do mercado, incluindo clientes. Saber que um filme desses passou por concepção, desenvolvimento, financiamento, execução, pós-produção, ajustes, aprovação e publicação, pelos olhos e aprovação de dezenas de pessoas, e nenhuma delas levantou uma única consideração, me faz temer pela integridade emocional e psicológica das pessoas pretas que compartilham dos mesmos espaços”, escreveu.

Apesar das críticas, o rápido reconhecimento do erro também despertou reações positivas. “Todos erramos! Especialmente em um contexto onde o racismo é estrutural. Que o caminho seja ajustar tudo isso juntos! Rápido e com a presença e a voz de todos”, diz um comentário. “Obrigado W+K pelo posicionamento, isso mostra que há sim o interesse na mudança, ação a qual se encontra nossa sociedade há tempos”, emenda outro.

Procurados, agência e cliente reiteraram nota publicada em suas plataformas. “Erro grande que não foi visto desta forma por quem fez e por quem aprovou. Isso mostra que temos que fazer mais, discutir mais. Erros podem ser oportunidades de mudança. Nesses momentos que tem haver crescimento”, acrescenta Joanna Monteiro, presidente do Clube de Criação e CCO da Publicis Toronto.

A criativa também comentou que o trabalho dos últimos dois anos do Clube de Criação tem sido focado em inclusão, com a formação do primeiro júri composto 50% por homens e 50% por mulheres, além da integração de profissionais negros e da categoria Periferia Criativa. Outra iniciativa destacada é o Clube+Vozes, projeto de meses de discussões entre profissionais negros no Instagram do Clube de Criação. “O Clube é muito mais plural e aberto hoje”, afirma.