Grandes marcas ajudam pequenas a suportar crise e manter ecossistema
E se 30% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro sumisse? O que aconteceria se cerca de 17 milhões de pequenos negócios (sete milhões de micro e pequenas empresas e 10,9 milhões de MEI) deixassem de existir? Apesar dos números reais relatados pelo Sebrae ao Poder360 em 2020, as perguntas lembram algo quase cinematográfico, como a cena do Thanos eliminando metade dos seres vivos num filme da Marvel. Exageros à parte, a vitalidade deste segmento para o país não é ficção.
Junto aos micro e pequenos comerciantes, os autônomos e informais formam uma parcela essencial da economia brasileira, mas foram profundamente afetados pela pandemia que já dura um ano e dois meses. Se para grandes empresas, marcas centenárias, gigantes da mídia e líderes na indústria, o baque foi forte, o que dizer de quem não tinha estrutura para essa crise, ainda que fosse só uma “gripezinha”? Diante dos desafios, houve reação dos gigantes que criaram ou expandiram estratégias para amenizar os impactos negativos e proteger o ecossistema.
Mil combinações, um objetivo
Um dos movimentos estruturados é o Apoie Um Restaurante, parceria entre Stella Artois e Nespresso, que acaba de iniciar sua segunda edição. Em 2020, foram mais de 140 mil vouchers vendidos, cerca de quatro mil restaurantes beneficiados e mais de R$ 11 milhões arrecadados. O modelo foi replicado em 20 países, entre eles África do Sul, Argentina, Bélgica, Canadá, Chile, México, Paraguai, Peru e Reino Unido.
Agora, em poucos dias já foram vendidos mais 30 mil vouchers, atendendo a quase mil. A expectativa é injetar R$ 3,2 milhões no setor de gastronomia, metade das marcas e metade pelas compras de vouchers.
Mariana Porto, head de marketing de Stella Artois, conta que a marca também está com a ação Influência Para Quem Precisa. A cerveja vai “doar” publiposts de influenciadores para promover mais de 65 restaurantes que precisam de visibilidade. “Ressignificamos o nosso propósito de Unir as Pessoas por um mundo melhor para ajudar a resolver problemas reais que estavam ao nosso alcance, doando nossas capacidades, competências e o nosso tempo para questões sociais urgentes. Esse período tem sido fundamental para refletir mais sobre nosso papel na sociedade e ir além dos rótulos, criando ações para um impacto positivo no ecossistema”, opina.
Também realizando sua segunda edição está o Ação Solidária, projeto da TIM com a rádio Transcontinental FM. A iniciativa, que ajuda proprietários a divulgarem seus negócios na rádio, alcançou 500 empreendimentos em 2020 e agora deve atender mais 270 microempreendedores. Diariamente são promovidos quatro empreendimentos comerciais e prestadores de serviço. Os locutores falam da atuação e contatos para o fechamento de negócios. Há posts nas redes sociais e divulgação dos comércios no site da rádio.
Já o movimento A Boa é Fortalecer, criado pela Antarctica, ofereceu espaço aos ambulantes nas redes sociais da marca e vouchers para garantir uma renda extra em parceria com o Zé Delivery. Em 2020, a marca já havia atuado em parceria com o Biscoito Globo, que revertia a venda dos produtos para os ambulantes. José Setton, gerente de marketing de Antarctica, afirma que os ambulantes divulgados até o momento tiveram bons resultados. “Eles são verdadeiros patrimônios das praias cariocas e seguiremos apoiando estes nossos amigos que estão sempre conosco nos momentos de lazer. O propósito das marcas precisa estar diretamente ligado à sociedade. Nesse momento de dificuldade, é essencial nos unirmos”, afirma.
Além dos projetos iniciados na pandemia, há iniciativas que já evoluíram em novo propósito para atender grupos ainda mais específicos. Em 2020 a Marisa apresentou o Sou Sócia. A plataforma permite que as pessoas se tornem vendedoras virtuais dos produtos do e-commerce da marca. O projeto integra o Movimento Volta por Cima, dedicado à retomada da autoestima e da confiança da mulher. Hoje mais de 24 mil sócias recebem treinamentos de moda, webinars sobre técnicas de venda etc.
A Fundação Grupo Volkswagen, que abrange as marcas do grupo no Brasil, abriu a primeira turma do projeto Empreendedorismo para Todos, focado em pessoas com deficiência. Renata Pifer, analista de responsabilidade social da Fundação Grupo Volskwagen, fala que incentivo ao empreendedorismo integra os projetos há mais de 10 anos, e destaca outros cases: Costurando o Futuro, que gera renda para 77 costureiros, e Carretas do Conhecimento, que oferecem cursos de aperfeiçoamento profissional. “Durante a pandemia, costureiros estão fazendo máscaras que serão entregues pelas empresas a seus empregados no Brasil e na Argentina”, diz Renata. Já foram adquiridas quase 110 mil unidades. Carretas do Conhecimento tiveram 47 turmas e mais de 1,7 mil horas em 2020. “O contexto da pandemia mostrou o quanto é importante as empresas se organizarem para ajudar pequenos empreendedores. É um caminho sem volta”, avalia.
A doação de espaços comerciais e parcerias diferenciadas são outros formatos adotados. Em 2020, a OLX Brasil doou o equivalente a R$ 20 milhões em mídia para vendedores autônomos e PMEs com plano profissional de anúncios na plataforma. Mais recentemente, em fevereiro, o Oi Seu Negócio ofereceu aos clientes o acesso ao Aceleraí, plataforma de comunicação criada pela Pullse que faz parte do Grupo Dreamers. Ela disponibiliza propagandas pré-produzidas e personalizadas para encaixar marca, telefone e site para usar em redes sociais e outras mídias.
No mesmo mês, a Coca-Cola FEMSA Brasil lançou o programa Crescendo Juntos Microempreendedor. São ações como capacitação de boas práticas na manipulação de alimentos, informação de protocolo de segurança e empreendedorismo, além de prêmios, soluções e parcerias para digitalização do negócio e oferta de microcrédito para quem atua no segmento de comida de rua e microestabelecimentos comunitários. A expectativa é impactar mais de 50 mil microempreendedores em São Paulo, numa parceria com rede Atacadão, Sebrae São Paulo, Aliança Empreendedora, Avante Microcrédito e Associação de Comida e Bebida de Rua do Estado de São Paulo.
Ferramentas e aprendizado
Bruno Bocchi é fundador e CEO da Gnet, ad tech e spin off da Grumft, agência da mídia programática. O profissional chama a atenção para outro elo dessa grande rede: marketplaces. “O avanço de marketplaces tem viabilizado a entrada no mundo do e-commerce para comércios de todos os tamanhos e segmentos, extremamente importante neste momento”, defende.
Uma das que mais atraíram pequenos lojistas chegou ao Brasil ano passado e com uma estratégia agressiva: cobrança zero de comissão, parcelamento sem juros e frete grátis. Para Felipe Feistler, head de negócios da Shopee, a empresa ajuda empreendedores na transformação digital e contribui para a economia local. Além dos incentivos, há a Central de Educação do Vendedor, com cursos rápidos focados em ferramentas de comércio eletrônico e webinars. “A Shopee também mantém parceria com integradores de mercado para que os vendedores tenham mais ferramentas para divulgar seus produtos. Soma-se a isso um grupo para vendedores no Facebook para trocarem informações, discutirem ideias e melhores práticas de vendas.”
No Brasil, a empresa indica um crescimento maior de vendas nas categorias de Saúde e beleza; Casa; e Celular e acessórios. Felipe Piringer, head de marketing, fala sobre o trabalho intenso nas duas frentes – compradores e vendedores – para potencializar os resultados e menciona campanhas já lançadas: a primeira de TV foi na Black Friday de 2020, na qual consumidores tiveram mais de R$ 1 milhão em vouchers, ofertas instantâneas e recompensas em jogos no aplicativo.
A segunda foi lançada no Mês do Consumidor, a #Shopeesadinha, e no ar agora está a campanha 5.5 Liquidação Dia das Mães. Há voucher de frete grátis, produtos com pelo menos 50% de desconto, R$ 1,5 milhão em cupons e promoções a cada duas horas. “Estamos muito felizes em conectar vendedores, marcas e consumidores brasileiros. Queremos oferecer a melhor experiência de compras com entretenimento”, indica.
Alcance exponencial
Com todas as restrições físicas, ter acesso a ferramentas digitais se tornou ainda mais importante. Nesse sentido, há algumas semanas, a Cielo e o Google anunciaram acordo para impactar mais de 600 mil negócios. Eles terão acesso a ferramentas para criar um perfil digital, uma loja virtual e até campanhas de publicidade online. O ambiente da Cielo foi integrado ao Google Meu Negócio, possibilitando a gestão do perfil da empresa na Busca e no Google Maps. Em 2020, o número de empresas verificadas cresceu 25%.
Em outra gigante da internet, Conrado Leister, vice-presidente do Facebook no Brasil, destaca que globalmente mais de 200 milhões de empresas, em sua maioria PMEs, usam ferramentas do Facebook, Instagram, Messenger ou WhatsApp para vender. Ele cita que desde 2020, o Facebook vem produzindo, com o Banco Mundial e a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o Relatório Global Sobre a Situação das Pequenas Empresas.
A edição divulgada mês passado ouviu 35 mil pequenas empresas de 27 países. Os profissionais entrevistados indicaram o uso das ferramentas para vender bens e serviços aos clientes (37%), anunciar (40%) e se comunicar (55%). “Pudemos observar esse processo de digitalização contribuindo para a sobrevivência dos pequenos negócios. As redes sociais desempenham um papel fundamental nesse cenário inicial de transição para o digital, principalmente no caso de empresas que não contavam com nenhuma estrutura ferramental e tinham conhecimento limitado para executar essa migração. Aplicativos como o WhatsApp e o Messenger se tornaram, em muitos casos, o principal canal de comércio e contato com clientes, e páginas no Facebook e contas no Instagram foram fundamentais para divulgação de produtos e serviços de forma eficiente e criativa”, diz.
Marcela Gava, analista de conteúdo do Capterra, acrescenta à lista a adoção de softwares. Os principais seriam programas de armazenamento e compartilhamento de arquivos, comunicação em equipe, ferramentas de organização pessoal e de gestão de tempo. Segundo ela, pesquisa do Capterra em abril de 2020 indicou que 43% das PMEs adotaram ferramentas digitais, e 25% planejavam implantar. No mês seguinte, nova pesquisa mostrou que o número de empresas que adotaram softwares saltou para 55%. “Com a gama de opções de softwares, em diferentes categorias e funcionalidades, tornou-se mais fácil replicar no online a rotina do trabalho presencial”, diz.
Uma das empresas que têm suprido essa demanda é a RD Station, que possui dois softwares para PMEs: o RD Station Marketing, voltado para automação de marketing digital; e o RD Station CRM, que é gratuito e direcionado para vendas. Com mais de 30 mil clientes nesse segmento, a RD anunciou uma parceria com o Sebrae. O programa Escalada Digital busca transformar digitalmente mais de 100 mil micro e pequenas empresas, apoiando a formação de profissionais e com ofertas exclusivas em produto.
Shelly Bronstein, diretora de parcerias e canais da RD Station, pontua que mais do que ‘bote salva-vidas’, a transformação digital significa uma oportunidade para micro e pequenos negócios, e a RD trabalha em diferentes frentes para isso. “Em 2020, a RD University liberou acesso gratuito para diversos cursos; a empresa reduziu o preço do RD Station Light, versão de entrada do software de automação de marketing, de R$ 59 para R$ 19,90 mensais; criamos iniciativas para PMEs envolvendo mais de 2 mil agências parceiras, como o programa Fortalecer para Crescer, cujo objetivo é ajudar empresas a evoluir sua estratégia de marketing e vendas para um modelo digital e inbound”, relata.
Fatia em crescimento
Além de muitas portas ainda abertas (virtuais e reais), outro reflexo dessa corrente pode ser visto em dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Mesmo em meio à crise, as micro e pequenas empresas tiveram, em 2020, um crescimento de 19% do número de pedidos de marcas ao órgão. Em 2019, foram 254 mil pedidos, sendo que cerca de 106 mil eram de microempreendedores individuais, micro e pequenas empresas. Em 2020, foram 275 mil pedidos de marcas: 126 mil feitos por pequenos negócios.
Para Raquel Minas, analista de inovação do Sebrae, um dos motivos desse crescimento é o fato de o processo ter ficado mais eficiente e rápido. “Antes, demorava mais de três anos até sair a decisão final. Hoje, isso é feito em menos de um ano. Essa melhoria ocorreu gradualmente entre 2017 e 2019. E, em 2020, as pessoas ficaram mais confiantes para apostar mais”, indica. No ano passado o crescimento médio de pedidos de marcas chegou a 28%, sendo junho a dezembro o período de melhor desempenho.
Ter suporte tecnológico, acesso a conhecimento e diferentes tipos de incentivos foi vital para muitos pequenos, tão vitais como eles são para a economia do país e para os ecossistemas dos grandes. Ivan Lemos Tonet, analista de relacionamento com o cliente do Sebrae, fala que a demanda por cursos e conhecimento cresceu exponencialmente nesse período. “Vimos uma busca muito intensa por conhecimento e alternativas para viabilizar os negócios. Além de grande parte do nosso portfólio ser gratuito, criamos novos cursos contextualizados, disponibilizamos por WhatsApp, mudamos a plataforma para webinars, consultorias virtuais, fizemos parcerias para auxiliar a entrada em marketplaces”, diz. De acordo com ele, todo esse esforço de ambos os lados evidencia como fazem parte do mesmo ecossistema e precisam uns dos outros. “Os grandes precisam dos pequenos. Se eles têm prejuízo, também afeta as famílias, tirando renda do consumo”, resume.
Para muitas fontes, fica o aprendizado de que a iniciativa privada precisará, cada vez mais, ter programas sustentáveis e de longo prazo apoiando o desenvolvimento do país. “Mesmo quando superarmos a pandemia, o mundo seguirá em transformação acelerada. As empresas precisam ser mais protagonistas na formação e capacitação dos profissionais do futuro e no fomento de uma economia sustentável”, avalia Shelly, da RD Station. “O cenário de recuperação ainda vai demandar atitudes como essas, mas acho que vai se reconfigurar. Proteger o pequeno é importante, de que forma vamos fazer isso?”, reflete Tonet.