História do capeta
Lula Vieira
Quando a criação me apresentou a campanha do turismo no Rio de Janeiro usando como imagem principal o Cristo Redentor, eu intuí que iria dar merda. Primeiro porque é uma solução óbvia e o óbvio não é filho de Deus. Todo criador com preguiça imagina usar a estátua fazendo uma gracinha. Existem milhares de anúncios, cartazes, banners, filmes com o Redentor como protagonista. Desde segurar bola (o sol) até tapando os olhos diante de uma mulher pelada. Não existe mais o que fazer com o filho de Deus que vela pelo Rio. Mas, para minha enorme surpresa, o pessoal conseguiu uma abordagem nova. Uma solução que usava o ícone maior da cidade (vamos ser sinceros, em franca disputa com bunda na praia, mas as feministas detestam a imagem – o que inviabiliza seu uso) com total adequação.
Para falar a verdade era uma desculpa razoável para o lugar-comum. Restava um outro problema: o Cristo do Rio tem dono. Tem direito autoral, que é do escultor francês, e a Cúria Metropolitana. Não se pode legalmente usar o Cristo para nada sem dar uma graninha para a família do francês, já morto, e a dona da estátua: a Igreja Católica. O pai do retratado, também conhecido como Pai nosso, não tem poderes sobre a imagem. Pelo menos no plano terreno. Tínhamos, portanto, de pedir autorização de uso para as autoridades eclesiásticas se quiséssemos ter a veneranda estátua como garoto-propaganda.
Era uma providência necessária, pois sem autorização correríamos o risco de levarmos um processo ou até mesmo excomunhão. Montamos uma equipe para ir à Cúria. Levamos a diretora de arte, um supervisor meio acólito e eu. Fui chefiando a excursão no papel de diretor de criação e ex-coroinha, capaz ainda de recitar o Pai-Nosso em latim. A reunião com as tais autoridades foi marcada no palácio episcopal, um lugar digno de receber almas ungidas pela proficiência divina, onde se podem ouvir coros de anjos e sentir o suave perfume de incensos seculares.
Era perto da hora do Ângelus e o próprio Rio de Janeiro parecia ter colocado um véu diáfano sobre as montanhas, em adoração ao Senhor. A diretoria de arte vestiu a sua roupa mais sóbria, pois não queríamos criar nenhum embaraço com as alminhas do claustro, já que a moça de minissaia era de arrasar qualquer voto de castidade. Teve até exame prévio quanto ao decote. Nós precisávamos da autorização e o mesmo artifício que a gente tinha usado para conseguir a liberação de um tanque de guerra junto ao Exército poderia não funcionar com o religioso que iria nos atender.
Na hora marcada, estávamos lá sentadinhos no amplo salão, tomando chá e comentando amenidades com alguns padres, quando entra a autoridade maior vestida de roxo, com um baita anel no dedo, o qual todos nós beijamos semiajoelhados, como bons e piedosos cristãos que sempre fomos. E comemos brevidades feitas pelas freirinhas, discutimos a beleza das antigas missas cantadas, eu cheguei a comentar a qualidade da música religiosa criada em Minas Gerais durante a fase do ouro. Comecei a me orgulhar de mim e da equipe. Cheguei até a achar que a vida moderna estava nos afastando da verdadeira vida espiritual. Cordeiro de Deus, tente piedade de mim! Horas tantas, o religioso quis examinar a campanha para ver se estava respeitando o símbolo religioso. Nesse momento acho que o cão, o capeta, o demo, “aquele-a-que-não-se-deve-dizer-o-nome” baixou na sala.
Pois só com a influência dele é possível explicar o seguinte diálogo entre o padre-chefe e a diretora de arte: – Minha filha, seus reclames não atentam contra a dignidade da religião?
E ela convicta, firme, escandindo as palavras: – Nem por um caralho!
Quiseram chamar um exorcista.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor