Histórias de Cannes: Antônio Neto

 

Não diga pra minha mãe que eu fui a Cannes porque ela pensa que fui a Paris tentar a vida como escritor

A primeira vez que fui a Cannes eu tinha 25 anos. Foi no mesmo ano que mudei de Porto Alegre para São Paulo. Nessa época minha primeira peça teatral, “A verdadeira história de Édipo Rei”,  estava fazendo um tremendo sucesso de público e crítica em Porto Alegre e eu havia decidido tentar a vida de escritor de teatro no maior polo cultural do Brasil.

Minha mãe me levou até a rodoviária (decidi economizar dinheiro prevendo tempos de muita dureza) e, antes de embarcar, com os olhos cheios de lágrimas ela me disse:

– Filho, nunca desista dos teus sonhos.  O maior fracasso é não tentar.

Com essas palavras na cabeça e o sonho de virar escritor famoso (também sonhava conquistar a Maitê Proença, casar com ela e ter quatro filhos) quase não senti passar as 18 horas dessa viagem inesquecível, que eu julgava ser a mais importante da minha vida.

Depois de pouco mais de duas semanas em São Paulo (não precisei sofrer muito, não precisei passar fome, não precisei de nenhuma crise existencial) troquei de planos e deixei de lado  meu sonho de ser escritor.

Meio sem querer (mas talvez isso fosse um desejo inconsciente), acabei mostrando meu portfólio para o Ricardo Guimarães, na época sócio e diretor de criação da Guimarães & Giacometti. Vendo meu portfólio e o meu primeiro livro, com prefácio do Luis Fernando Veríssimo, o Ricardo imediatamente me contratou.

Conhecendo o Ricardo Guimarães e o Denis Giacometti, tenho dúvidas se eles me contrataram pelo meu portfólio ou pelo meu livro. Mas de qualquer maneira meu sonho de virar escritor não chegou a morrer, mas entrou em coma profundo depois daquela contratação.

Em menos de um ano trabalhando na G&G me apaixonei pela publicidade e esqueci o teatro e a literatura. Naquele curto período na agência consegui criar uma divertida campanha para as lojas Riachuelo, que me encheu de orgulho e me levou pela primeira vez ao Anuário do Clube de Criação. Isso me fez sonhar com prêmios maiores e, ainda naquele ano, embarquei para Cannes para o meu primeiro festival publicitário.

Antes de ir liguei para a minha mãe contando que iria para a França. Imediatamente ela pensou que eu iria para Paris. Cheia de imaginação, como era a minha saudosa mãe, não me deixou explicar para onde exatamente eu estava indo. Imediatamente passou a falar de Sartre, de Camus, de Simone de Beauvoir, de Jean Genet,  já me imaginando horas e horas nos cafés da Rive Gauche a escrever romances revolucionários, peças teatrais polêmicas, roteiros de cinema para François Truffaut, Claude Chabrol, entre outros.

Enfim, minha mãe imaginou que eu estava começando a ganhar o mundo e a me projetar como o grande pensador gaúcho que atravessava as fronteiras do Rio Grande e invadia o mundo com o seu talento. Mal ela sabia que em vez de escrever romances, peças de teatro e, porque não, tratados filosóficos, eu estava indo a Cannes para ver o que redatores do mundo inteiro estavam escrevendo para vender sabonete, sabão em pó, carro, refrigerante etc.

Assim foi a minha primeira experiência em Cannes. Lembro de passar mais de oito horas nas salas de projeção, amando tudo que via e me sentindo um adúltero, traindo a nobre literatura com a vulgar publicidade. Definitivamente eu era um pecador. Saía do Palais des Festivals e ia para um hotelzinho de quinta categoria, muito diferente da grande maioria de criativos que iam com tudo pago por suas agências. Pelo menos isso me aproximava da vida de escritor que um dia sonhei e que a minha mãe ainda sonhava para mim.

O meu hotel, lembro do nome e endereço, ficava no  número 16 da Rue Jean Jaurés e se chamava Alan Robert’s Hotel. Tudo pago por mim mesmo. Nenhuma agência havia bancado minha viagem, até porque, mesmo tendo feito um trabalho bem bacana na G&G, fui demitido quando um novo diretor de criação assumiu o departamento. Nada disso importava. Eu estava apaixonado. Não pela publicidade, mas pelos filmes brilhantes que a publicidade fazia.

Na verdade eu não gostava de publicidade, achava chata, burra, monótona. Eu gostava era da sensação de liberdade de criar de forma irresponsável, de criar por criar. Eu acreditava que a criação era uma entidade sem fins lucrativos, um espécie de subfilosofia existencialista ou até uma subfilosofia platônica. Eu não queria nem pensar que a razão de existir de um departamento de criação estava intimamente ligada a um negócio. Esse pensamento me dava um certo consolo e me aliviava da culpa de estar apaixonado por Cannes e não pelo submundo de Paris. Eu poderia, com bastante licença poética, dizer para minha mãe que havia encontrado um grupo de profissionais neoplatônicos, neoexistencialistas, sonhadores, que pretendiam mudar o mundo com práticas criativas de 30 segundos. Era a imaginação no poder!

Eu poderia dizer isso para ela, mas não disse. Quando voltei de Cannes, liguei outra vez para minha mãe e disse que Paris continuava linda e que meu sonho de mudar o mundo por meio da literatura e do teatro ainda estava vivo e forte. Mal sabia ela que meu sonho agora era mudar o mundo criando comerciais de 30 segundos e que meus aliados poderiam ser  J&J, P&G, McDonald´s, Coca-Cola etc.

Mais de duas décadas se passaram desde que fui a Cannes pela primeira vez. E minha querida mãe morreu acreditando que eu nunca desisti do meu sonho de ser um escritor maldito dos subúrbios de Paris.

Uma coisa, talvez, me sirva de consolo se ela, de um jeito ou de outro, continue me vendo lá de cima: ela pode ter certeza de que o Festival de Cannes, que eu amo tanto, de certa forma tem um “quê” de rebeldia existencialista, um “quê” de irresponsabilidade. Ela pode ter certeza de que o Festival de Cannes não tem compromisso algum, ou quase nenhum, com o negócio do cliente, com o capitalismo selvagem. O festival é um desfile de ideias puras, rompedoras, numa espécie de movimento guerrilheiro dentro das agências que combatem a ideia do lucro. Acho que posso dizer isso para a minha mãe sem medo de errar. Ou será que estou errado? Ou será que as agências que param tudo para criar fantasmas para Cannes fazem isso para o bem dos negócios do cliente? Não sei, mas prefiro pensar que o Festival de Cannes é um ato de rebeldia pura, um movimento libertário que planeja marchar de Cannes a Paris, invadir o Quartier Latin e queimar briefings, pré e pós-testes e declarar que a imaginação, finalmente, assumirá todo o poder na publicidade.

*vice-presidente de criação da Fischer & Friends