Histórias de Cannes: Armando Strozenberg

 

1999. Para um jurado improvável, o ano que não terminou

Eu?!?
Luiz Antonio Ribeiro Pinto, à época poderoso e adorável representante do Cannes Lions no Brasil, marca almoço. Três dias depois, ele ousa propor o seguinte: “Com raríssimas exceções, o festival convida para integrar um dos seus júris profissionais que não venham de forma predominante e única da Criação. Mas eu achei de bom tom te convidar, para fazer parte do júri de Press & Poster da 46ª edição do Festival. É uma bela forma de a publicidade brasileira, quebrando esse paradigma no mundo, reconhecer o teu raro talento multifacetado”. Uau! Ego entre inflado e incrédulo, prometo-lhe que me esforçaria para não macular as nossas cores tropicais à beira do Mediterrâneo francês. E me vejo tomado por aquelas imagens-clichê de Cannes, todas elas íntimas e velhas conhecidas. Explico.

Cannes c’est moi!
O Palais des Festivals (não o atual, mas o antigo, neoclássico) já faz parte da minha vida desde os anos 1950, quando pra lá viajava a reboque dos meus pais, turistas frequentes da Riviera francesa. Nos anos 1960 e 1970, como correspondente em Paris do Jornal do Brasil (o mais influente diário brasileiro d’então), era o responsável pela cobertura anual do Festival de Cinema de Cannes e do Midem – Marché International de l’Industrie du Disque et de l’Édition Musicale. (Fui testemunha, por exemplo, do furor causado pelo filme “Terra em transe”, do nosso Glauber Rocha, e das fulminantes passagens dos Mutantes e, em especial, da Elis Regina.) E, como publicitário, desde 1985, Cannes reentrara na minha vida quando comecei a frequentar o então Festival Internationale de Publicité, que rapidamente se transformou em objeto de devoção quando a minha agência (a Contemporânea) abocanhou quatro Leões em quatro anos seguidos, quando acolheu o meu sócio (Mauro Matos) entre os jurados de Film ou ao constatar – com orgulho – o reconhecimento crescente do material criado pela propaganda brasileira para as plateias do novo (e horrendo) Palais des Festivals.

A glória pré
“Você não viu da missa a metade”, alertara grande fofoqueiro do nosso mercado num dos telefonemas que recebi após o convite para integrar o júri de Press & Poster de 1999. Foram seis meses de celebridade com centralidade, desconfiança silenciosa e bajulação explícita.

O ícone com a palavra
Em 6 de maio, as emoções mudam de patamar. Trecho de carta do mítico Keith Reinhard, chairman e CEO da DDB (que trabalhou juntinho do Doyle, Dane e do Bernbach), presidente dos júris de Cannes 1999. “I am honored to serve as this year’s jury President, and I look forward to working with you to select a group of Lions that reflects the high creative standards to which we all aspire. See you in Cannes. KR.”

Apita o juiz!
A bola rola. Em 17 de junho sou pré-selecionado para um papo a dois com Keith sobre a magia da criatividade, no bar do Martinez, antes do jantar de confraternização com os demais colegas dos júris de Press & Poster e Cyber. Dia seguinte, 8h32 em ponto, atravesso a portaria reservada às celebridades nos fundos do Palais – a abóbora virou carruagem. Após um precioso mas enfático brief do Keith, o júri é dividido em três subgrupos. Durante os próximos três dias de solidão intensa, as pernas bambeiam, o coração dispara, a respiração parece parar, toda vez que atribuo uma nota a uma das centenas de trabalhos cujo destino me foi confiado. Nos dias #4 e #5, com todos os jurados reunidos, as peças finalistas são analisadas sob a batuta atenta do Keith. Sim, a metáfora se aplica, pois até espacialmente o presidente do júri parece reger uma orquestra internacional – às vezes diante de intervenções complacentes, outras mais inquietas, desconfiadas até (quando, por exemplo, ele sai para verificar se um anúncio foi, de fato, veiculado), até interpelações impacientes (em especial, quando latinos e anglo-saxões se desentendem), num ritual coreografado por braços que se levantam por ordem do maestro Reinhard.

Intervalo e volta ao campo
Sobrevivem 112 peças. Relações pessoais e profissionais mais e melhor delineadas após quase 80 horas de convívio forçado. O que permite, nessa altura, cochichos aqui e ali (Hummmmm: é dando que se recebe?…). Na memória, ainda fresquinhas: discussões de caráter estético, moral (fantasmas?, caixas-dois?), social, comportamental, cultural (como sofrem neste quesito os asiáticos!), debates sobre originalidade, inovação, semiótica, contribuição à indústria, business (Com sete ouros selecionados, a essa altura o Brasil já é vice-líder em premiações, segundo os meus cálculos secretos.).

Prorrogação ou disputa de pênaltis?
Definição dos Grands Prix. Na finalésima, duas peças, ambas londrinas. A primeira (da TBWA para Playstation da Sony): anúncio sem texto algum, nem assinatura, só uma foto de um casal improvável, ela bem mais alta, ele franzino, meio punk, meio freak; no lugar dos mamilos, sob suas camisetas, elementos iguais aos de um joystick de videogame. Peça rompedora, com total pertinência aos códigos dos então jovens consumidores que ali começam a reinar. Isto é: publicidade sem cara de publicidade, real e virtual juntos e misturados. A outra (da BMDP DDB para VW), com todas as virtudes e inteligência da gramática vigente para a boa publicidade, mas com característica de déjà vu (é sequência de campanha). Duas horas de boa, braba e rica discussão. Premiação profética: “Nipples”/“Mamilos” abocanha os GPs – o de Press e o de Poster.

Me, Mr. Keith!!!???
Terça-feira, dia #6, 12h. The Jury meets the Press. Comandando a festa, Keith. E não é que o ícone parte para mais uma enchida de bola neste jurado improvável, decidindo me escolher para apresentar o resultado como representante dos jurados e ajudar a responder às perguntas. Quando afirmo coisa do tipo: “A peça vencedora não apenas se comunica, mas também se conecta com os consumidores do produto”. E adiantamos outras questões que fariam parte da agenda da comunicação publicitária até hoje, como o minimalismo, o glocal, o empoderamento da imagem, freshness, a big idea etc. Que situação assustadora você me colocou, hein, Keith! Até hoje experimento pesadelos com aquela cena de quase hora e meia que mais pareciam 20…

Dirigir o mundo? Sharp? No shenaningans? Exemplair?
Ser jurado em Cannes implica a construção de relações para a vida toda e fermento para autoestima. “I am pleased to have shared these days with you”, Begoña Cuesta (Bassat, Ogilvy & Mather/Barcelona); “I hope that one day I’ll find another jury member as sharp as you in Cannes”, Aldo Cernuto (Pirella Gottsche Lowe/Milano); “…I just want to thank you for the way you distanced yourself from any element of patriotic shenanigans”, Roger Hatchuel (Chairman/Festival); “How great if you and our jury could manage the world”, Fredrik Pantzerhielm (BBDO/AllanssonNilsson Rififi); “…Sois assuré, cher Armando, de ma solide et fidèle amitié que vient de naitre au Festival de Cannes du quel tu est devenu un jury member exemplaire!”, Romain Hatchuel/CEO (Festival 1999).

Egotrip com happy end
Presidente-ícone, de novo: “I wanted to say what a pleasure it was for me to have worked with you, such a great guy and pro. Thanks again for your great work, wisdom and companionship to this Presidency. I hope I might meet up with you someplace in the world. KR”. Missão aparentemente (bem) cumprida.

Insight final
1999 à parte, como definir o meu sentimento nestes 27 anos que frequento Cannes Lions? Um misto de intimidade e de orgulho, como se alguém da família tivesse ido todos esses anos para o mundo e voltado em triunfo. Acho que é disto que se trata.

P.S.: Les femmes-panthères
Mas não é só no Palais, nem na Croisette, nem só nos ene eventos paralelos, que está o look e o soul, deste sexagenário Festival. O que dizer da linhagem das femmes-panthères fundada por mademoiselle Pascaline (não sei exatamente quando); hoje já na segunda edição na pessoa da filha, mademoiselle Esmeralda? Com todo o respeito, ao vê-las desfilar garbosas pelas ruas e ladeiras de Cannes, me ocorre: por que não refletir sobre o eventual significado menos perceptível dos seus rugidos? Sem eles, seria bem mais árida, e menos hedonista, esta alegoria jactante que ano sim, outro também, tanto inspira as histórias de que é feita a nossa profissão.

*chairman Brasil da Havas Worldwide