Histórias de Cannes: Átila Francucci

 

Should or shouldn’t? This is the question, monsieur

1998. A segunda vez que eu ia pra Cannes. A primeira como jurado. Teria embarcado com alguns pacotes de fralda a fim de suportar com dignidade a missão não fosse o Brasil naquele ano o único país com dois jurados no Press and Poster. Para minha sorte, junto comigo, representando a pátria, estava o saudoso, querido e já consagrado Tomás Lorente. Meses antes da viagem começamos a nos encontrar com uma certa frequência e assim nos tornamos muito próximos. Num desses encontros ele me revelou suas duas grandes preocupações como jurado: uma possível performance ruim da DM9 e sua pouca fluência no inglês. De fato, quem conviveu um pouco com o espanhol sabia que ele não apenas não era muito chegado na língua do Obama como tinha até uma certa antipatia por ela.

Naquele ano o presidente do júri foi o francês Jean-Marie Dru, que tinha acabado de vender sua agência (acho que se chamava BDDP) para a TBWA, da qual se tornara presidente internacional (ou seja, presidente de todas as TBWAs do mundo menos a dos Estados Unidos). Ao longo dos dias de julgamento, o nervosismo de Tomás com suas duas preocupações foi diminuindo de forma muito consistente. Primeiro porque a DM9 performava de forma incrível no Press and Poster e tudo levava a crer que pela primeira vez uma agência brasileira seria eleita a Agência do Ano (como de fato o foi). Segundo, porque o inglês “oficializado” pelo presidente do júri, se não era o macarrônico, era o croassônico – uma derivação da língua inglesa usualmente falada unicamente pelos franceses (para uma rápida iniciação no inglês croassônico reveja “A Pantera Cor de Rosa” com Steve Martin e seu “I would like to buy a hamburguer”).

No último dia de trabalho do júri, com quase tudo definido e o Brasil brilhando como o país mais premiado em mídia impressa, ficou estabelecido que cada jurado poderia, se quisesse, “chamar” uma peça para que um possível upgrade entrasse em julgamento. E foi assim que um ou outro bronze virou prata e algumas poucas pratas se transformaram em ouro. O Tomás, então, decidiu “chamar” um anúncio da Hellmann’s Light da Young, que já era prata, para ouro. Vale repetir: o Brasil naquele ano brilhava e como a DM9 tinha conseguido uma extraordinária pontuação, seria muito difícil que o título de Agência do Ano escapasse do Brasil. Esse nosso desempenho fez com que o júri desenvolvesse um certo biquinho em relação a brasileiros, biquinho esse que se acentuava ainda mais se esse brasileiro fosse da DM9.

Mas não houve biquinho que intimidasse um relaxado e feliz Tomás Lorente. Para o espanhol aquele anúncio tinha que ser ouro e pronto. Assim sendo, ele se levantou e, caprichando no inglês, explicou para o júri, por a + b, porque aquele anúncio brasileiro da Young merecia muito mais do que prata. O presidente do júri, então, pegou o anúncio e depois de um longo discurso em inglês croassônico abriu a votação com a estranhíssima formulação: “Who thinks this silver shouldn’t be gold?”.

Como não existe absolutamente nenhuma diferença de pronúncia entre “should” e “shouldn’t” no inglês croassônico, tenho certeza que foi o argumento do eterno Tomás que fez aqueles braços se levantarem de forma unânime após a maliciosa pergunta. Incluindo o dele.

*publicitário e presidente da Reidusunus