Histórias de Cannes: Carlos Chiesa

 

 

Anotações de viagem

(Final da década de 1980, início dos anos 90)

 

Nada como estar na W/Brasil entre 88 e 92. Em termos brasileiros, é uma espécie de McLaren do período Senna/Prost.

Uma constelação de criativos, um ambiente positivo, livre daquelas concorrências mesquinhas das agências convencionais. Uma delícia trabalhar com gente que, como você, só quer fazer seu trabalho o melhor possível.

Natural ganhar meu primeiro Leão aí.

Um filme para a Folha, em dupla com o Gabriel Zellmeister. Era muito desafiador e gratificante trabalhar para esse jornal. Por ter rompido com o IVC, o ritmo de anúncios para se posicionar perante o mercado era alucinante, no mínimo um por dia. O briefing vinha no final da manhã (na melhor das hipóteses), no meio da tarde (na pior), mas o horário de entrega de material (NdR.: era pré-digital) era início da noite, invariavelmente. Rabo de foguete, mas que permitia fazer peças memoráveis, com resultados palpáveis.

Mal acreditei quando soubemos que a Folha tinha se tornado o maior jornal do país, parecia uma tarefa impossível.

Primeira vez em Cannes.

Nenhuma agência em que trabalhei antes mostrou interesse nesse festival. Mesmo as agências fortes em criação. Não inscreviam peças, não estimulavam ninguém a comparecer. Era mais uma coisa do Washington mesmo e, por isso, a grande maioria dos profissionais top de criação estava longe do volume de Leões acumulados pelo Golden até este início dos anos 90.

Washington me disse que o Carlton é o hotel para se estar e é lá que estou. Ele e o Gabriel tinham me contado que Cannes é um ótimo lugar para fazer contatos com colegas de outros países. Gosto disso.

Como ainda não conheço ninguém, fico fazendo companhia para as Sras. Olivetto e Guanaes (NR.: Nizan ainda estava na W e ela era sua primeira esposa, Silvia, se não me engano), enquanto eles procuram os colegas de outros países, em especial os espanhóis. De fato, sempre vejo os brasileiros conversando entre si, não parecem muito interessados em fazer contatos com pessoas de outros países.

(1993)

Há muito acho que precisamos de mais contato com os profissionais de criação que admiramos, majoritariamente americanos e ingleses. Lembro que Washington e eu admirávamos John Noble, um redator da época do apogeu da DDB NY, por exemplo. Acho que teria sido muito rico ter tido chance de conhecer melhor esses caras. Um único contato com o Bob Levinson, da mesma safra, já foi inesquecível! Felizmente pude trabalhar com o Julio Cosi e com o Alex Periscinoto, os homens que melhor entenderam a proposta de Bill Bernbach e os maiores responsáveis pela introdução da criatividade na propaganda brasileira. Hoje, a propaganda inglesa é a mais interessante. Particularmente, a feita pelas agências independentes e entre elas a Bartle Bogle Hegarty é soberana.

Agora que virei presidente do CCSP quero pôr esse projeto em marcha, e nada melhor que começar com o John Hegarty, o criativo mais admirado do mundo neste momento. Para isso, encarreguei meu amigo João Daniel, vice-presidente do CCSP, de usar sua vasta experiência em Cannes para ser uma espécie de Ministro das Relações Exteriores. Felizmente, ele foi colega de júri do John e tem bom acesso. Temos uma conversa a três marcada para esta tarde no terraço do Carlton.

A conversa não podia ter sido melhor. Expliquei ao John o que pretendia e ele concordou em vir ao Brasil assim que sua agenda permitisse. Achou muito interessante minha ideia de dividir a palestra com o executivo principal da Levi’s, talvez o case mais vistoso da BBH. Meu objetivo é que ele conte como sua agência funciona e nos mostre um case como exemplo. Também digo a ele que pretendo fazer essa palestra com o aval da ABA, porque entendo ser essencial anunciantes e criativos ficarem em sintonia. Tudo fica mais fácil, tudo melhora se os dois se entendem. Falo por experiência própria. Quando estava na McCann, muita gente estranhava eu ir ao cliente junto com o atendimento. A percepção mudou quando viram os resultados.

(1994)

Jurado em Cannes na categoria TV. Vai ser uma situação muito crítica. De um lado, a pressão para que os jurados não votem como jogadores de futebol representando seu país, devido ao vexame do Grand Prix do ano anterior. Do outro, uma insatisfação com o jurado brasileiro que me antecedeu, supostamente culpado de ter proporcionado poucos Leões para nossas cores. O fato é que os espanhóis se excederam para ganhar esse Grand Prix. Primeiro que o fantasma era tão assombroso que nem o produto era de verdade. Segundo que praticamente copiaram um comercial brasileiro, mudando o objeto colado. Terceiro que fazer filme bom para cola, convenhamos, não é nada difícil.

Realmente exaustiva a tarefa do jurado brasileiro. Os espanhóis têm direito a dois jurados, nós a apenas um. Tenho que trabalhar dobrado para me equiparar a eles. Felizmente me senti à vontade. Não só por já ter maior intimidade com o John Hegarty, presidente do júri, que fez uma palestra memorável em São Paulo, como com um dos espanhóis, com quem trabalhei no Brasil. Falar razoavelmente espanhol e italiano também me ajudou com o outro espanhol e os dois representantes da península.

“Não vote pelo bem do seu país, vote pelo bem da propaganda”.

Toni Segarra, jurado espanhol de imprensa, tomou uma bronca de um dos meus colegas espanhóis, porque estava seguindo essa orientação. “Tiene alas en las espaldas?” Nada de bancar o anjo. Ninguém precisa me falar que serei crucificado se o número de Leões para a bancada auriverde não estiver de acordo com as expectativas. Sejam elas quais forem.

“Cannes é como um desfile de moda. O que você exibe aqui é para impressionar, não é o que você usa no dia a dia”. Foi a justificativa que ouvi, no bar de praia do Carlton, de um dos maiores ganhadores de Leões do Brasil.

Felizmente, tudo acabou bem. Parece que o número de Leões obtidos “por mim” foi razoável, não serei crucificado, e recebi uma carta do John, na qualidade de presidente, dizendo que minha atuação tornou fácil uma semana difícil.

O que ficou, tecnicamente falando? Que vi ao menos um comercial brasileiro supermaisoumenos ganhar um Leão (aqui no Brasil, acho que passou totalmente despercebido) e um outro que eu achava ótimo provocar asco nos jurados, a começar pelo John. Felizmente, só estava identificado como brasileiro no catálogo, então não respingou em mim, mas… Coisa para se pensar. Era uma piada aparentemente internacional, uma situação que poderia ocorrer em qualquer lugar. Aprendi que não é porque uma situação não é típica de um país que ela é internacional. Usos e costumes comuns podem ser aceitos em um lugar e rejeitados em outro.

(1996)

Observo que está todo mundo começando a usar a mesma fórmula criativa. Nos filmes, uma situação inusitada mostrada com o mínimo de diálogos e/ou locução off, para terminar com marca e assinatura. Na imprensa, igual minimalismo: uma imagem alterada, de preferência por Photoshop, marca no canto com o título, ambos com o menor tamanho possível. Tem duas vantagens: fácil de entender por gente que não tem tempo e, no caso de inscrição em Cannes, não exigir boa vontade dos júris para entender títulos e textos em outra língua. É mais “internacional”, mas também menos preciso para se falar regionalmente. E se todos passam a usar a mesma fórmula, como as agências irão se diferenciar?

Depois do Festival vou a Londres, encontrar o John Hegarty. Quero contar a ele meu projeto de agência. É a pessoa que mais respeito nesta profissão então não vou deixar passar a oportunidade.

John aprovou meu conceito de agência. Achou inovador e me encorajou a ir em frente. Se eu tinha alguma insegurança, ela se dissipou. Aproveitei para perguntar se poderia passar algum tempo observando como funciona a BBH. Como é uma agência independente, não pertence a nenhum grupo e a minha agência também será, não haverá risco de levar infos para outros.

Ele concorda.

*Sócio e diretor de criação da 440V