Histórias de Cannes: Carlos Righi
O festival mais bacana do planeta
Perdi as contas. Acho que já fui pra Cannes umas 20 vezes. Tem gente que reclama, mas eu não. Juro. Gosto de ir. Adoro a cidade, aprendo sempre alguma coisa, conheço sempre alguém interessante. Cannes tem um milhão de histórias. Mas, como muitas coisas na vida, nada se compara ao impacto da primeira vez. E minha primeira vez em Cannes foi em 1987. Pois é, mil novecentos e oitenta e sete. Praticamente século retrasado.
Cannes estava se firmando como sede permanente do Festival da Sawa. Para quem não era nascido, explico: o festival era realizado na cidade só em anos alternados, alternados justamente com Veneza, daí o leão alado como símbolo e troféu.
Minha primeira viagem à Europa. Depois de buscar minha namorada em Londres, namorada que virou mulher e mãe dos gêmeos, a ensolarada Cannes era assim: a gente chegava na cidade na segunda ou na terça e ia procurar pelos brasileiros. E tinha que procurar mesmo, porque a nossa delegação consistia em 30, 40 pessoas no máximo. Não é como hoje que há dez patrícios por esquina. Quem será que estava na cidade? Descobri rápido que a maioria ficava na beira da piscina do Majestic. Era ali que combinávamos jantares, passeios, ouvíamos as notícias verdadeiras e falsas sobre o festival.
Na terça à noite começava oficialmente o evento. O famoso jantar de abertura era realizado no antigo cassino, no extremo oposto da cidade. E o jantar, acreditem, era sentado! Naquele esquema de mesonas, cada mesona identificada com uma bandeirinha do país, tudo muito formal. Mais parecia um casamento do que uma festa de publicitários. Todos de terno e gravata. Não me esqueço da comida ruim e das pessoas ocupando a mesa do Brasil.
O Sérgio Graciotti era meu chefe na época. O Sergião era muito, muito fudido. Um dos caras mais criativos de todos os tempos. Respeitado no mundo inteiro. Sócio da MPM/Casablanca, então a maior e melhor agência do país. Como se fosse o anfitrião, foi me apresentando às pessoas que chegavam à mesa e eu, verdadeiramente deslumbrado, fui conhecendo pessoalmente gente que eu conhecia só das fichas técnicas dos Anuários do Clube de Criação de São Paulo.
Todos diretores de criação, donos, poderosos. Eu era um menino, vinte e poucos anos, e tinha a sensação de que furava a fila do festival. Nomes muito mais conhecidos e importantes e talentosos que eu, ou seja, quase todo mundo, nunca tinham ido a Cannes. Não havia esta facilidade que há hoje em viajar.
Não tinha internet, e-mail, celular. O fax estava começando! Não havia, imagine, cartão de crédito internacional. A gente tinha que estocar dólares comprados aos poucos ao longo do ano. Levar escondido. A inflação era descontrolada e o dinheiro que a gente ganhava era corrigido todo mês. Então a gente ia até a esquina da Rua General Jardim, debaixo do prédio da Norton, e comprava os dólares do Seu Mário, um italiano enorme, sotaquento, que era dono da Little (pronunciava-se Litou), vendia PFs, amendinas maravilhosas e verdinhas que escondia debaixo do balcão. Até ser assaltado, mas isso é outro artigo.
Então, a primeira tarefa a ser feita em Cannes era justamente penhorar, digo, trocar os dólares. Senão não comíamos. Justamente por esta razão não podíamos chegar no domingo. Questão de sobrevivência. Um banco árabe na Croisette tinhas as melhores cotações. Ele está lá até hoje. Passo na porta e sinto um alívio em não ter que entrar. Trocávamos nossos caríssimos dólares por enormes cédulas de francos, que não cabiam na carteira. E achávamos tudo muito, muito caro. Câmbio. Isso era um assunto.
Na quarta-feira, finalmente, podíamos assistir a alguns filmes. E só havia filmes no festival. As categorias de cerveja e automóveis eram as preferidas. Mesmo assim não havia risco de lotar o Palais. De jeito nenhum. Não tinha Press, Outdoor, Promo, Radio, Direct, Titanium, Cyber, Design, Integrated, PR, Mobile. Não tinha palestras. Não tinha gente de atendimento, de mídia, de planejamento. Cliente, nem pensar. Jornalista até tinha. Mas era um ou dois. Três, vai.
À noite, os brasileiros, depois de jantar no Pelorin (esse apelido é velho), batiam ponto no Martinez. E ocupavam sempre as mesmas mesas, as últimas do corredor, na saída para a Croisette.
Na quinta íamos passear em Saint Paul de Vence. Ou Saint Tropez. À noite, de volta ao Martinez, o assunto era outro: quem estava no short? Quem tinha chance de Leão? Claro que o jurado brasileiro (sim, era um só) desaparecia. Na sexta tinha o shortlist, imperdível, emocionante, surpreendente. Tudo era inédito. Produções, como diz a Mariana Youssef, de cair o cu da bunda. Lembre-se de que naquele tempo o Brasil era pobre e a Europa rica. Lembre-se também que não havia YouTube, não havia DVD, dificilmente um filme gringo era nacionalizado e veiculava por aqui.
O que a gente assistia ali no Palais, só meses depois chegava ao Brasil. E chegava em fita VHS. Finalmente, no sábado, a premiação. Naquela época ganhávamos muito mais Leões em Film do que ganhamos hoje na categoria. Domingo, quem ficava na cidade, marcava de se encontrar e se despedir no La Pizza. Era uma tradição. Eu fui. E, contando com a Clara, jantamos em quatro pessoas.
Não é justo dizer que Cannes era melhor ou pior do que é hoje. Outra época, outras pessoas, outro festival. O mundo muda e Cannes continua sendo o festival mais bacana do planeta. Se você nunca foi, tem que ir. Pena que não dá pra ir no festival de mil novecentos e oitenta e sete.
*sócio da Fulano Filmes