Histórias de Cannes: Christina Carvalho Pinto

 

 

Cannes… quando Cannes era Cannes

Um dos grandes privilégios da minha vida foi fazer dupla, durante anos, com um redator imbatível: Nelson Porto. Trabalhamos juntos na CBBA, na Norton e na Y&R. Formávamos uma dupla de configuração esquisita: redator com redator! (Quando nos perguntavam como isso era possível, Nelson respondia que dava certo porque um só sabia ler e o outro só sabia escrever rsrsrs…). “Triplávamos” com diferentes – e excelentes – diretores de arte, trabalhávamos loucamente, nos divertíamos muito e ganhávamos prêmios aos montes.

Vivíamos uma época em que ganhar um Leão em Cannes era, de fato, o auge da consagração. Havia apenas duas categorias: Film e Press & Poster, sendo que Film era a que realmente fazia a glória de um profissional. Os Leões mereciam o nome de Leões, pois não eram nada fáceis de encontrar na selva de Cannes. Hoje você encontra muito mais Leão na Croisette do que na savana africana.

Lembro-me de inúmeras passagens cômicas, tragicômicas, ridículas e gloriosas naquela pequena cidade da Côte d’Azur. Algumas delas me fazem gargalhar até hoje. As mais hilárias aconteciam em meio à multidão de criativos do mundo todo, na esperada manhã da exibição do shortlist. Entrar para o shortlist (ele próprio já uma consagração) era tão crucial que o nível de ansiedade no Palais des Festivals beirava o surto coletivo. De repente, meia dúzia vaiava um comercial. Muitas vezes se tratava apenas de uma turminha que tinha implicância com um certo profissional ou um certo país, nada além disso. Mas o terror de que uma peça nossa passasse por essa situação nos fazia afundar na cadeira do auditório cada vez que se aproximava uma categoria em que tivéssemos peças inscritas, como se aqueles milhares de colegas de todas as partes do mundo conhecessem os autores de cada comercial e estivessem olhando para nós no escuro daquele megaespaço! Se a peça aparecia no shortlist e não era vaiada, já estávamos a dois passos do paraíso, o que valia muito. Mas… e se a peça não entrasse para o shortlist? A sensação era tão dramática que a gente só não se atirava do píer em frente ao Carlton porque ali é muito raso.

Lembro-me de uma vez em que apostávamos em dois comerciais que já haviam conquistado vários prêmios no Brasil. Não apareceram no shortlist (e nem tinham mesmo que aparecer, pois cada júri tem seus critérios… E seus champagnes nas madrugadas). Quando percebemos que nossos filmes não estavam lá, uma onda de vergonha nos tomou inteiramente. Saímos quase de quatro, ainda com o auditório às escuras, e fomos nos esconder nos toaletes do Palais, como se o mundo fosse nos apedrejar a partir dali. Quanta idiotice.

Mas havia, claro, os anos de pura felicidade. Quando fui jurada, por exemplo, parti para a França já com a sentença de um grande fracasso para o Brasil. No auge do plano Collor, com o mercado nocauteado, nosso país tinha trinta e poucos filmes inscritos. Um volume pífio comparado ao nosso histórico anterior. Recebi muitos champagnes no meu apartamento, de jurados de vários países que exaustivamente me convidavam para fecharmos os resultados dias antes de vermos as peças do mundo todo. (Coisa comum em muitos júris, e os tolinhos dos profissionais acreditam que festivais são procissões de pureza e só os melhores vencem…) Me mantive firme. Um jurado espanhol, desesperado, me apelidou de “Rainha das Amazonas”, já que nada me detinha do objetivo de sair dali com o resultado justo. Eu contava com um fator muito positivo e sabia disso: dada a situação precária da economia brasileira naquele momento, as poucas agências que conseguiram inscrever alguma peça tiveram que escolher muito; então, a peneira brasileira já estava feita. Tínhamos poucos, mas brilhantes comerciais na disputa. Veio o shortlist: se não me engano, dos trinta e poucos, 28 surgiram no telão naquela esplendorosa manhã de junho! Dezesseis viraram Leões. Um verdadeiro show. (Se os números não estiverem 100% certos, estão próximos.) Tomei todos os champagnes que se enfileiravam no aparador do meu quarto e reverenciei a memória das amazonas por jamais desistirem de seus princípios.

Nesse dia, depois de quase ter sido carregada pela delegação brasileira extasiada diante dos resultados, lá estávamos todos no fim da tarde, no bar do Majestic, celebrando a vitória, quando percebi que faltava pouco mais de meia hora para a cerimônia de entrega dos prêmios. Seria uma grande noite para o Brasil e eu tinha levado um vestido vermelho deslumbrante.

Como boa pisciana, desligada desses aspectos que seres de outros signos costumam chamar de óbvios, eu havia esquecido o vestido no fundo da mala e, ao retirá-lo, percebi que estava completamente amassado. Liguei para o serviço de quarto e já não havia tempo para passar. “Je suis desolée”, me disse, como sempre, a camareira. Desesperada, tirei da mala um ferrinho portátil de passar roupa, estiquei o vestido sobre a cama o quanto pude, e tentei tudo para obter um resultado minimamente decente. O vestido ficou pior, agora com vincos bem-definidos sobre o tecido, nos lugares errados.

Ligo para o quarto do Nelson, já em prantos. (Os homens estão sempre prontos nessas horas. Não se maquiam, não secam o cabelo, não amassam o vestido etc.) Nelson, fiel amigo, um verdadeiro irmão, desce de imediato, impecável em seu smoking. Fora de mim, já com os olhos inchados e o rímel escorrendo, me enrolo numa toalha, abro a porta, mostro o ferro de passar e, por respeito e pudor, entro no armário embrulhada na toalha e ali me fecho. Em poucos minutos o vestido estava usável. Nelson, sempre um gentleman, vira de costas, eu coloco o vestido, retoco a maquiagem e lá vamos nós!

No último ano de minha gestão como presidente do Grupo Young & Rubicam, abocanhamos cinco Leões na soma de São Paulo e Rio. (Lembrem-se: naquela época um Leão era uma conquista celestial). Para subir ao palco junto com o querido Ruy Lindenberg, escolhi dessa vez um vestido que não amassava. Foi uma noite inesquecível.

Hoje, Cannes é outra coisa. E eu também sou outra. Nos últimos anos, abriu-se à minha frente um imenso horizonte de novas visões. Entendo agora como muito mais desafiador o papel das mentes criativas neste pequeno e lindo planeta. A forma será sempre importante no universo de um criativo, mas isso a gente tira de letra. O desafio é despertar para o impacto do conteúdo que vem embalado pela forma. As grandes mentes criativas estão, cada vez mais, aliando ao inusitado da forma o esplendor de conteúdos capazes de ampliar o universo das audiências. (Ou pelo menos não empobrecê-las.) Mas isso é assunto para um outro depoimento.

*Sócia-fundadora do Grupo Full Jazz, lidera também no Brasil plataforma sobre inovação e sustentabilidade, o Mercado Ético (www.mercadoetico.com.br)