Histórias de Cannes: Eduardo Axelrud

 

 

O caminho do bem

E lá vem mais um Festival de Cannes. O lugar é um só, mas existem vários Festivais de Cannes rolando ao mesmo tempo.

Existe o Cannes de quem vai ver filmes. Centenas, talvez milhares de comerciais enfileirados um atrás do outro, dia após dia.

Existe o Cannes de quem quer festa. Das cafonas Opening ou Closing Galas até as descoladíssimas festas dos Youngs de algum país escandinavo, passando por aquela festa de uma agência internacional que todo mundo conseguiu convite menos você.

Existe o Cannes das praias, dos iates, do sol, do topless. De quem vai só para fazer contatos. Muitas vezes com pessoas que têm escritório no mesmo quarteirão. De quem vai para experimentar a culinária francesa. De quem vai só para poder dizer que foi de novo.

E tem o Cannes do conteúdo. Dos seminários. Dos palestrantes, dos últimos movimentos e das próximas tendências.

Todos esses festivais de Cannes estão lá, à sua disposição, e nada contra quem busca cada um deles.

Mas o meu Cannes é esse último. Onde você escuta palestrantes que não combinaram entre si falar muitas vezes sobre assuntos que se complementam de uma maneira surpreendente. Porque cada vez mais Cannes se converteu em um imenso fórum de debates, de ideias, de tendências, onde a cada palestra você vai somando anotações e extraindo aos poucos uma percepção clara de algo incrível: o Zeitgeist, o espírito do tempo.

E pensando por esse prisma, olhando agora para trás, acho que a transformação mais surpreendente que Cannes nos mostrou nos últimos anos foi a gradual conversão da propaganda malvada na propaganda do bem.

Pense um pouco: há cerca de dez anos, os melhores filmes eram os mais malvados. O politicamente incorreto imperava, em comerciais onde, para deleite da plateia do festival, músicos ruins eram devorados por leões, crianças cuspiam em guardas e salva-vidas musculosos tinham o castigo de fazer respiração boca a boca em homens desdentados, só para citar comerciais premiados de marcas como Diesel, Heineken e tantas outras.

No entanto, de um tempo para cá, o cenário mudou. As pequenas maldades e incorreções começaram a dar lugar a um espírito de comunidade, de compartilhamento, de bons exemplos.

Quando que, nos anos 2000, veríamos uma animação de um fazendeiro que cria porquinhos de maneira orgânica ao som de Willie Nelson ganhar o Grand Prix de Film? Posso imaginar o mesmo filme sendo coberto de assobios e vaias há meia década atrás.

E quando nos anos 2000 um Grand Prix gráfico, que já foi dado a uma peça que mostrava um calção intacto de um surfista nas entranhas abertas de um tubarão que o havia devorado, seria concedido a um cartaz em que o logo da Coca-Cola é feito por mãos que compartilham uma garrafa do refrigerante?

A própria Diesel, que fazia os comerciais mais insanos no passado, foi premiada há um ou dois anos com uma campanha de jovens que fundam seu próprio país em uma ilha. Ousada e irreverente, sim. Mas com um inédito espírito de comunidade. São outros tempos. O que era careta virou in. A verdade e os bons sentimentos vieram para ficar.

O que nos trouxe a isso? A ubiquidade das redes sociais? O entendimento de que a sustentabilidade não se sustenta só no discurso? O amadurecimento de um setor inteiro em âmbito mundial, que passou a entender melhor seu papel frente à sociedade? Não esqueçam de que a palestra com maior público em 2012 foi justamente aquela na qual o ex-presidente Clinton levantou a questão da responsabilidade social da nossa atividade a todos os publicitários que lotavam o Grand Audi.

Não sei responder essas questões. Mas acho ótimo estar vivendo tempos como esses. E quem sabe descobriremos a resposta este ano, de 16 a 22 de junho, em Cannes.

*vice-presidente de criação da Competence